O HOMEM INVISIVEL
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Quem não gostaria de experimentar as sensações de ser
invisível? Subtrair-se ao olhar de seus semelhantes, que delícia! Ser
livre para bisbilhotar sem ser pressentido, desvendar segredos e
presenciar atos e fatos que normalmente se ocultam a todos, que
perspectiva sedutora! A idéia de ser invisível acarreta uma noção de
extrema liberdade, de livre-arbítrio, e traz consigo a de impunidade,
pois o indivíduo se furtaria não só à vista dos homens como à lei e
à justiça.
O Homem Invisível, de H. G. Wells, mostra, porém, como
essa liberdade e essa impunidade são ilusórias. Griffin, o físico que
inventa um meio de se tornar invisível, deixando-se embriagar pela
noção do incrível poder de que dispõe, percebe de imediato o outro
lado da questão: em pleno inverno, só pode andar nu para não se
denunciar, o que lhe provoca espirros e gripe; vê-se obrigado a usar
permanentemente máscara e roupas para "existir" e comunicar-se
com o mundo; não consegue, e em grande parte devido a seu gênio
irascível, estar em boas relações com ninguém, o que lhe frustra as
ambições de ser "reconhecido" como gênio e como uma pessoa
especial. Ao invés disso, é caçado como um marginal da pior
espécie, um inimigo público, o símbolo da maldade e da estranheza
que o homem comum enxerga em tudo aquilo que não
compreende.
E ele próprio, por fim, parece aceitar e desejar essa
marginalidade. Mais ainda: ciente de que a invisibilidade é uma
força, um poder de que se acha investido, sonha com um reinado
de Terror sobre as pequenas aldeias que atravessa. Todavia, tendose
acumpliciado com um vagabundo ao qual confia os livros em
que estão escritos os seus trabalhos e a fórmula secreta, em código,
de como se fazer invisível, vê-se roubado e recorre a um antigo
companheiro de faculdade, a quem conta seu segredo, e que o
atraiçoa chamando a polícia. Na perseguição que se segue, o
Homem Invisível é morto, e seu corpo vai aos poucos aparecendo
aos olhos de todos.
Não se trata de um romance escrito apenas para
entretenimento. H. G. Wells não se limita a desenvolver uma
história, seu propósito é fazer o leitor refletir. O fim trágico de
Griffin, quando dispunha de um invento revolucionário que
poderia ser utilizado em favor de todos, revela a incompreensão
desse mesmo invento não só de parte do público mas também do
próprio inventor, que pretendia usá-lo em proveito exclusivamente
pessoal. Em vez da glória e do poder, Griffin obtém apenas o ódio,
o medo e a repugnância. E como todo ser de exceção, é visto com
temor e desconfiança.
Aliás, o leitor habitual de Wells já deve ter percebido que
em seus romances de antecipação, desde A Máquina do Tempo, Wells
coloca o problema da dificuldade ou mesmo da total
incomunicação do ser dito excepcional com seus semelhantes. Em
0 Homem Invisível esta incomunicação atinge o limite da rejeição total
com a perseguição e morte do inventor. E o fato de caracterizar
Griffin como um albino contribui naturalmente para reforçar essa
idéia. Griffin já era, antes de sua descoberta, um ser de exceção, um
marginal dentro da sociedade, estigmatizado pelo seu mal incurável.
O que provavelmente o fez tão irritadiço e certamente colaborou
para a sua ruína.
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1 Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe
Digital Source com a intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a
quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a
oportunidade de conhecerem novas obras.Se quiser outros títulos nos
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prazer recebê-lo em nosso grupo.
MESTRES DO HORROR E DA FANTASIA
H.G.WELLS
De repente, o estranho ergueu as mãos
enluvadas e cerradas, bateu com os pés no chão e gritou:
— Pare! — com tal violência que silenciou-a
instantaneamente.
— A senhora não sabe — disse ele — quem sou
e o que sou. Vou lhe mostrar. Por Deus! Vou lhe
mostrar. — Colocou então a mão espalmada sobre o
rosto e retirou-a. O centro de seu rosto tornou-se uma
cavidade negra. — Tome — disse. Adiantou-se e
entregou à sra. Hall algo que ela, de olhos fixos no rosto
metamorfoseado, aceitou automaticamente. Então,
quando viu o que era, deu um grito agudo, deixou-o cair
e recuou, cambaleando. O nariz — era o nariz do
estranho! rosado e brilhante — rolou para o chão.
Depois tirou os óculos e todos os presentes
arquejaram convulsivamente. Tirou o chapéu e, com um
gesto brusco, puxou as suíças e as ataduras. Por um
momento estas resistiram. O súbito arrepio de um
pressentimento terrível percorreu o bar. — Oh, meu
Deus! — exclamou alguém. Então, elas se soltaram.
Francisco Alves
qualidade há mais de um século
H.G.WELLS
O HOMEM INVISÍVEL
Tradução Elsa Martins
Francisco Alves
© The Executors of the Estate of H. G. Wells Título original: The
Invisible Man
Revisão tipográfica: Marcos Antônio dos Santos Coelho e Salvador
Pittaro
Impresso no Brasil Printed in Brazil
1985
Todos os direitos desta tradução reservados à:
LIVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORA S.A.
Rua Sete de Setembro, 177 — Centro
20050 — Rio de Janeiro, RJ
1
A CHEGADA DO ESTRANHO
O estranho chegou no início de fevereiro, em um dia
gélido, arrostando o vento cortante e a neve que não cessava de
cair, a última nevada do ano. Caminhava pela colina, vindo, ao que
parecia, da estação da estrada de ferro de Bramblehurst e segurava
uma pequena valise negra na mão calçada com uma luva grossa.
Estava agasalhado da cabeça aos pés e a aba do chapéu de feltro
macio ocultava-lhe cada centímetro do rosto, exceto a ponta
brilhante do nariz; a neve tinha se acumulado em seus ombros e
peito, acrescentando uma orla branca ao peso que carregava.
Cambaleando, entrou na "Coach and Horses", aparentemente mais
morto do que vivo e deixou cair a maleta. — Fogo — implorou —
por caridade! Um quarto e fogo! — Batendo com os pés no chão,
sacudiu a neve no bar e seguiu a sra. Hall até a sala de visitas, para
falar de negócios. E, com aquela preliminar e mais a concordância
imediata quanto às condições, além de um par de soberanos
jogados sobre a mesa, tomou aposentos na estalagem.
A sra. Hall acendeu o fogo e deixou-o lá, saindo a fim de
preparar-lhe, ela mesma, uma refeição. Um hóspede que vinha a
Iping no inverno já era uma sorte extraordinária, ainda mais um
hóspede que não barganhava, e estava disposta a mostrar-se digna
de tal felicidade. Logo que o bacon começou a fritar e Millie, a
apática empregada, espertou um pouco, graças a algumas
expressões bem escolhidas de desdém, levou a toalha, pratos e
copos para a sala e começou a arrumá-los com o maior éclat.
Embora o fogo estivesse ardendo vivamente, ficou surpresa ao ver
que o visitante ainda estava de chapéu e casaco, de pé, dando-lhe as
costas e contemplando, através da janela, a neve que caía no pátio.
Suas mãos enluvadas entrelaçavam-se atrás e parecia absorto em
pensamentos. Observou que a neve derretida que ainda lhe
salpicava os ombros estava pingando no tapete. — Posso pegar seu
chapéu e casaco, senhor — disse —, e secá-los bem na cozinha?
— Não — respondeu ele, sem se voltar.
Sem muita certeza de tê-lo ouvido, estava prestes a
repetir a pergunta.
Então ele virou a cabeça e olhou-a por cima do ombro.
— Prefiro continuar assim — disse, enfaticamente, e ela notou que
usava grandes óculos escuros com protetores laterais, e que bastas
suíças sobre a gola do casaco escondiam-lhe completamente o
rosto.
— Muito bem, senhor — replicou. — Como quiser.
Daqui a pouco a sala estará mais quente.
O estranho não respondeu e desviou novamente o rosto;
e a sra. Hall, percebendo que suas tentativas de conversa eram
inoportunas, acabou de pôr a mesa com movimentos bruscos e
rápidos e apressou-se a sair da sala. Quando voltou, ele ainda estava
de pé no mesmo lugar, como um homem de pedra, as costas
encurvadas, a gola voltada para cima e a aba gotejante do chapéu
virada para baixo, ocultando-lhe por completo o rosto e as orelhas.
Pousou o prato de ovos e bacon sobre a mesa com um alarido
considerável e elevou a voz, em vez de falar com naturalidade. —
Seu almoço está servido, senhor.
— Obrigado — retrucou ele de pronto e não se moveu
até que ela fechasse a porta. Só então deu meia-volta e aproximouse
da mesa.
Quando a sra. Hall passou por trás do bar, para ir até a
cozinha, ouviu um som que se repetia a intervalos regulares. Crique,
crique, crique, continuava, o som de uma colher mexida
rapidamente em círculos, dentro de uma vasilha. — Aquela garota!
— exclamou. — Vejam só! Esqueci-me completamente da
mostarda. É a moleza dela! — E, enquanto acabava de bater a
mostarda pessoalmente, deu algumas alfinetadas verbais em Millie,
por sua excessiva lerdeza. Tinha cozido o presunto e os ovos, posto
a mesa e tudo o mais, enquanto Millie (que ajudante!) nem
conseguira aprontar a mostarda. E ele, um novo hóspede, querendo
ficar! Encheu o pote de mostarda e colocando-o, com certa
solenidade em uma bandeja de chá dourada e preta, levou-o até a
sala.
Bateu e entrou em seguida. Ao fazê-lo, o hóspede
moveu-se rapidamente, de tal forma que apenas conseguiu ver, de
relance, um objeto branco desaparecendo por baixo da mesa.
Parecia que ele estava apanhando alguma coisa do chão. Com um
ruído seco, pôs o pote de mostarda sobre a mesa e, então, notou
que o sobretudo e o chapéu tinham sido tirados e colocados em
uma cadeira diante do fogo. Um par de botas molhadas ameaçava
enferrujar o guarda-fogo de aço da lareira. Resolutamente, dirigiu-se
para as peças de vestuário. — Acho que agora posso levá-las para
secar
— disse, em um tom que não admitia contestação.
— Deixe o chapéu — disse o hóspede em voz abafada e
ela, voltando-se, viu que tinha erguido a cabeça e estava sentado,
observando-a.
Por um momento ficou imóvel, olhando-o, de boca
aberta, demasiado surpresa para falar.
Segurava um pano branco — um guardanapo que
trouxera
— diante da porção inferior do rosto, de forma a
encobrir a boca e maxilares, o que explicava a voz surda. Mas não
fora isso o que espantara a sra. Hall, e sim o fato de que toda a
testa, acima dos óculos azuis, estava envolta em uma atadura
branca, e outra lhe encobria as orelhas, sem deixar nem um pedaço
de rosto à mostra, a não ser o nariz rosado e pontiagudo. Este era
de um rosa claro e brilhante, exatamente como parecera desde o
princípio. Vestia um paletó de veludo castanho-escuro, com uma
gola alta forrada de linho preto virada para cima, em volta do
pescoço. O cabelo espesso e negro, soltando-se como podia
embaixo e entre as ataduras que se cruzavam, projetava-se
formando caudas e chifres esquisitos, dando-lhe a aparência mais
estranha que se poderia conceber. Aquela cabeça tapada e envolta
em bandagens era tão diferente do que seria capaz de imaginar que,
por um momento, ficou rígida.
Ele não baixara o guardanapo e ficara segurando-o, como
via agora, com a mão enluvada e castanha, fixando-a com seus
impenetráveis óculos azuis. — Deixe o chapéu — repetiu, falando
distintamente através do guardanapo branco.
Os nervos dela começavam a recuperar-se do choque que
haviam sofrido. Recolocou o chapéu sobre a cadeira perto do fogo.
— Não sabia, senhor — começou — que. . . — e calouse,
desconcertada.
— Obrigado — disse ele secamente, olhando dela para a
porta e depois para ela novamente.
— Vou secá-las muito bem, imediatamente, senhor —
falou, levando as roupas do aposento. Relanceou outra vez para a
cabeça enfaixada de branco e para os óculos azuis, enquanto ia
saindo; mas o guardanapo ainda se mantinha diante do rosto dele.
Sentiu um, pequeno calafrio ao fechar a porta e sua expressão
demonstrava claramente surpresa e perplexidade. — Nunca —
sussurrou.
— Que coisa! — Dirigiu-se para a cozinha,
silenciosamente, e tão preocupada estava que, ao chegar, nem lhe
ocorreu perguntar a Milhe que trapalhada fazia no momento.
O visitante permaneceu sentado, atento aos passos que se
afastavam. Olhou atentamente para a janela, antes de tirar o
guardanapo e recomeçar a refeição. Comeu um pouco, lançou um
olhar desconfiado para a janela, comeu mais um pouco, depois
levantou-se e, com o guardanapo na mão, atravessou o aposento e
desceu a persiana até a musselina branca que resguardava as
vidraças inferiores. Isso deixou a sala na penumbra. Depois, com
um jeito mais tranqüilo, voltou à mesa e à sua refeição.
— O pobre-coitado sofreu um acidente ou fez uma
operação ou qualquer coisa semelhante — disse a Sra. Hall. —
Puxa! Que susto me deram aquelas ataduras!
Pôs um pouco mais de carvão no fogo, desdobrou o
cabide de pé e pendurou o casaco do viajante. — E aqueles óculos!
Ora, ele parece mais um escafandro do que um homem de verdade!
— Pendurou o cachecol em uma extremidade do cabide. —
Segurando aquele guardanapo em cima da boca o tempo todo.
Falando através dele!.. . Talvez a boca também tenha sido ferida —
talvez.
Deu uma viravolta, como alguém que, de repente,
lembra-se de algo. — Deus me abençoe! — exclamou, mudando
bruscamente de assunto; — você ainda não fez as batatas, Millie?
Quando a Sra. Hall foi tirar a mesa do almoço, sua
impressão de que a boca do estranho devia ter sido cortada ou
desfigurada no acidente que supunha que sofrerá foi confirmada,
pois ele estava fumando um cachimbo e, durante todo o tempo em
que permaneceu na sala, nem uma vez afrouxou o cachecol de seda
no qual havia enrolado a parte inferior do rosto para levar a
boquilha aos lábios. Isso, no entanto, não era por distração, pois
observou que a olhava de vez em quando, vendo-a soltar fumaça.
Estava sentado em um canto, de costas para a persiana e, tendo
comido e bebido, e estando confortavelmente aquecido, falou com
menos daquela agressividade lacônica de antes. O reflexo do fogo
emprestava aos grandes óculos uma espécie de vivacidade com
toques avermelhados que até então lhes faltara.
— Tenho alguma bagagem na estação de Bramblehurst
— disse, e perguntou-lhe como poderia fazer para que a
mandassem. Educadamente, inclinou a cabeça enfaixada para
demonstrar que agradecia a explicação dela. — Amanhã! —
protestou. — Não há uma entrega mais rápida? — e pareceu
desapontado quando ela lhe respondeu — Não. — Tinha certeza?
Não havia nenhum homem para ir até lá de charrete?
Sem a menor relutância a Sra. Hall respondeu às
perguntas e encetou uma conversa. — A estrada é íngreme pela
colina, senhor - disse, respondendo à indagação sobre a charrete; e
depois, aproveitando a oportunidade, acrescentou: — Foi lá que
uma carruagem virou há mais de um ano. Morreu um senhor, além
do cocheiro. Em um instante acontecem acidentes, não é?
Mas o visitante não se deixou levar tão facilmente. — É
verdade — concordou, falando através do cachecol e olhando-a
calmamente com os óculos impenetráveis.
— Mas levam muito tempo para sarar, não acha,
senhor?... Tom, o filho de minha irmã, cortou o braço com uma
foice, caiu em cima dela no campo de feno e, Deus me abençoe,
ficou três meses sem poder trabalhar, senhor. O senhor mal
acreditaria. Isso me deu um verdadeiro horror de foice, senhor.
— Compreendo perfeitamente — disse o visitante.
— Houve uma ocasião em que ficou com medo de ter
que fazer uma operação — tão grave era o seu estado, senhor.
O estranho riu inesperadamente, o riso como um latido
que ele parecia morder e matar na própria boca. — Ficou?
— Ficou, senhor. E não foi nada divertido para os que
cuidaram dele, como eu — já que minha irmã estava tão ocupada
com os filhos menores. Havia ataduras a serem colocadas e
retiradas, senhor. Por isso, se permite que tenha a ousadia de lhe
dizer, senhor . ..
— Pode me arranjar fósforos? — interrompeu o visitante
asperamente. — Meu cachimbo apagou.
A Sra. Hall calou-se prontamente. Decerto que era uma
grosseria da parte dele, depois de ter-lhe contado tudo o que fizera.
Olhou-o ofegando por um segundo e lembrou-se dos dois
soberanos. Saiu para buscar os fósforos.
— Obrigado — disse ele secamente, quando os trouxe, e
voltou-lhe as costas olhando novamente pela janela. Nada fazia
para encorajá-la. Evidentemente um assunto que envolvia
operações e bandagens lhe era desagradável. Afinal nem "ousara lhe
dizer" coisa nenhuma. Mas a desconsideração a havia irritado, e ela
descontou em Millie a tarde inteira.
O visitante permaneceu na sala até as quatro horas, sem
pedir desculpas por sua intromissão. Ficou a maior parte do tempo
absolutamente imóvel; dava a impressão de estar sentado na
escuridão crescente, fumando ao clarão da lareira, ou talvez
cochilando.
Uma ou duas vezes, um ouvinte curioso poderia tê-lo
escutado dirigindo-se às brasas e, por um período de cinco
minutos, seus passos foram ouvidos caminhando pela sala. Parecia
estar falando sozinho. Depois, a cadeira rangeu; tinha se sentado
outra vez.
2
AS PRIMEIRAS IMPRESSÕES DO SR. TEDDY
HENFREY
Às quatro horas, quando já estava escurecendo e a Sra.
Hall procurava encher-se de coragem para entrar e perguntar ao
hóspede se gostaria de tomar chá, Teddy Henfrey, o relojoeiro,
apareceu no bar. — Por Deus, Sra. Hall — disse ele — o tempo
está horrível para se usar botas leves! — Lá fora a neve caía mais
depressa.
A Sra. Hall concordou e depois, vendo que ele trazia sua
maleta, teve uma idéia brilhante. — Já que está aqui, Sr. Teddy —
falou — gostaria que desse uma olhada no velho relógio da sala.
Está funcionando e bate as horas corretamente e bem alto; mas o
ponteiro de horas não sai das seis.
E mostrando o caminho, foi até a porta da sala, bateu e
entrou.
Ao abri-la, viu que o visitante estava sentado na cadeira
de braços, aparentemente cochilando, com a cabeça enfaixada caída
para um lado. A única luz era o brilho avermelhado do fogo, que se
refletia em seus olhos como sinais luminosos fechados de estrada
de ferro, e o pouco que restava da claridade do dia entrava pela
porta aberta, deixando nas trevas o rosto inclinado para baixo. A
ela, tudo parecia rubro, sombrio e indistinto, tanto mais que
acabara de acender o lampião do bar e seus olhos estavam
ofuscados. Mas, por um segundo, teve a impressão de que o
homem que via tinha uma boca enorme, completamente aberta —
uma vasta e incrível boca que engolia totalmente a porção inferior
do rosto. Foi uma sensação momentânea: a cabeça enfaixada de
branco, os olhos de óculos monstruosos e o grande vazio embaixo.
Ele moveu-se, endireitou-se na cadeira e ergueu a mão. Ela abriu
completamente a porta para que a sala ficasse mais clara e viu-o
com maior nitidez, o cachecol cobrindo-lhe o rosto, exatamente
como já o vira segurar o guardanapo. As sombras a haviam
confundido, pensou.
— O senhor se importaria que este homem entrasse para
ver o relógio? — perguntou, recuperando-se do choque inesperado.
— Para ver o relógio? — repetiu ele, olhando ao seu
redor, meio sonolento e falando através da mão; depois,
completamente acordado, respondeu: — Claro que não.
A sra. Hall saiu para buscar um lampião e ele levantou-se
e espreguiçou-se. A luz chegou e o sr. Teddy Henfrey, ao entrar,
deparou com aquela criatura enfaixada. Como contou depois, foi
"colhido de surpresa".
— Boa-tarde — disse o estranho, encarando-o como
uma lagosta, segundo o sr. Henfrey, vivamente impressionado
pelos óculos escuros.
— Espero — desculpou-se o sr. Henfrey — que não
esteja sendo incômodo.
— De modo algum — retrucou o estranho. — Embora
tenha entendido que esta sala seria minha, para meu uso particular
— concluiu, dirigindo-se à sra. Hall.
— Pensei, senhor — desculpou-se a sra. Hall — que
preferiria que o relógio estivesse.. . — Quase ia dizendo "perfeito".
— Realmente — disse o estranho — realmente, ainda
que, via de regra, goste de ficar só, sem que me perturbem. Mas,
na verdade, estou satisfeito por consertarem o relógio —
acrescentou, percebendo uma certa hesitação na atitude do sr.
Henfrey. — Muito satisfeito. — O sr. Henfrey pretendia pedir
desculpas e retirar-se, porém aquela declaração o tranqüilizou. O
estranho permaneceu de pé, de costas para a lareira, com as mãos
entrelaçadas. — Depois — disse — quando o conserto do relógio
estiver concluído, acho que gostaria de tomar chá. Mas não antes
que tenha sido reparado.
A sra. Hall ia saindo — dessa vez não tentou puxar
conversa, pois não queria ser repelida diante do sr. Henfrey,
quando o visitante perguntou-lhe se tinha tomado alguma
providência sobre a bagagem em Bramblehurst. Esta informou-o
de que falara com o carteiro e que um mensageiro poderia trazê-la
de manhã. — Tem certeza de que isto é o mais cedo possível? —
insistiu ele.
Com visível frieza, ela assegurou-lhe de que tinha.
— Deveria explicar — acrescentou ele —, que estava
realmente com muito frio e muito cansado para fazer na ocasião,
que sou um pesquisador e faço experiências.
— Verdade, senhor? — disse a sra. Hall, muito
impressionada.
— E que minha bagagem contém aparelhos e
instrumentos.
— Que são coisas de fato muito necessárias, senhor —
comentou a sra. Hall.
— E, naturalmente, estou ansioso para prosseguir com
minhas pesquisas.
— Claro, senhor.
— Meu motivo para vir para Iping — continuou ele com
um modo levemente enfático —, foi o desejo de solidão. Não
quero ser interrompido em meu trabalho. E, além de meu trabalho,
um acidente. ..
— Foi o que pensei — murmurou a sra. Hall para si
mesma.
— Faz com que precise de certo isolamento. Algumas
vezes, meus olhos ficam tão fracos e doloridos que tenho que me
fechar no escuro, horas a fio. Trancar-me. Algumas vezes, de
quando em quando. No momento, decerto que não. Nessas
ocasiões, a menor perturbação, a entrada de outra pessoa na sala é
uma fonte de
extrema contrariedade para mim. É bom que essas coisas
sejam entendidas.
— Certamente, senhor — replicou a sra. Hall. — E se
me permite a ousadia de perguntar. ..
— Acho que isso é tudo — disse o estranho com aquele
ar calmo e irretorquível de finalidade, que podia assumir quando
queria. A sra. Hall guardou a pergunta e a simpatia para outra
ocasião mais oportuna.
Depois que a sra. Hall saiu, ele ficou de pé em frente da
lareira, com o olhar parado, como descreveu o sr. Henfrey ocupado
em consertar o relógio. Tinha tirado não só os ponteiros e o
mostrador, como também o mecanismo e procurava trabalhar tão
lenta, silenciosa e discretamente quanto podia. O lampião estava
junto dele e o quebra-luz verde projetava uma luz brilhante em suas
mãos e na moldura e engrenagens, deixando o resto do aposento na
sombra. Quando ergueu os olhos, manchas coloridas agitaram-se
diante destes. Sendo de natureza essencialmente curiosa, tinha
tirado o mecanismo — um procedimento inteiramente
desnecessário — com a intenção de demorar sua partida e talvez
encetar uma conversa com o estranho. Mas este permanecia ali,
totalmente mudo e imóvel. Tão imóvel que começou a enervar o sr.
Henfrey. Sentia-se só no aposento e olhou mais uma vez; lá
estavam, cinzentas e indistintas, a cabeça enfaixada e as grandes
lentes azuis contemplando-o fixamente, com uma névoa de
manchas verdes flutuando diante deles. A visão parecia tão
fantástica a Henfrey que, por um minuto, permaneceram fitando-se
sem qualquer expressão. Depois Henfrey baixou novamente o
olhar. Que posição mais desconcertante! Gostaria de dizer alguma
coisa. Poderia observar que o tempo estava muito frio para aquela
época do ano?
Ergueu os olhos outra vez, como se fosse fazer mira para
aquele tiro inicial. — O tempo... — começou.
— Por que não termina e vai embora? — perguntou a
figura rígida, evidentemente em um estado de irritação
penosamente controlada. — Tudo o que tem a fazer é fixar o
ponteiro de horas em seu eixo. Está, simplesmente, fazendo cera.. .
— Muito bem, senhor, só mais um minuto, senhor.
Esqueci. .. __E o sr. Henfrey concluiu a tarefa e se foi.
Foi-se, mas extremamente contrariado. — Que diabo! —
exclamou, falando sozinho, enquanto caminhava com dificuldade
pela neve derretida, em direção à aldeia; — claro que um homem
tem o direito de examinar um relógio de vez em quando.
Depois: — Não se pode olhar para o senhor? É horrível!
E mais uma vez: — Parece que não. Se a polícia estivesse
procurando o senhor, não poderia estar mais disfarçado e
enfaixado.
Na esquina de Gleeson avistou Hall, que havia se casado
recentemente com a hospedeira do estranho no "Coach and
Horses" e que passara a cocheiro da charrete de Iping até Sidderbridge
Junction, quando, ocasionalmente, a requisitavam. Vinha em
direção a ele, de volta de lá. Era evidente, pela maneira com que
guiava, que Hall tinha "parado um pouquinho" em Sidderbridge. —
Oi, Teddy — cumprimentou ao vê-lo.
— Você está com um personagem muito esquisito em
casa!
— disse Teddy.
Amavelmente, Hall freou. — Que quer dizer? —
perguntou.
— Um freguês esquisito, hospedado no "Coach and
Horses"
— explicou Teddy. — Cruzes!
E continuou, fazendo a Hall uma descrição detalhada do
grotesco hóspede. — Até parece um disfarce, não acha? Por mim,
gostaria de ver a cara de um homem que estivesse hospedado em
minha casa —, disse Henfrey. — Mas as mulheres são tão
confiantes, quando se trata de desconhecidos. Ele alugou aposentos
e nem sequer deu o nome, Hall.
— Não me diga! — exclamou Hall, que era um homem
de compreensão meio lenta.
— É verdade — confirmou Teddy. — Por semana. Seja
quem for, não pode livrar-se dele em menos de uma semana. E tem
muita bagagem para chegar amanhã, segundo disse. Esperemos que
não haja pedras nos caixotes, Hall.
Contou a Hall como sua tia em Hastings tinha sido lesada
por um estranho com malas vazias. Assim, deixou Hall vagamente
desconfiado. — Vamos embora, minha velha — disse à égua. —
Acho que tenho que ver de que se trata.
Teddy seguiu caminho, com a consciência
consideravelmente aliviada.
Mas, ao invés de "ver de que se tratava", Hall, ao voltar,
foi duramente censurado pela mulher devido ao tempo que se
demorara em Sidderbridge e suas perguntas conciliadoras foram
respondidas asperamente e sem nenhuma objetividade. Mas a
semente de suspeita que Teddy plantara tinha germinado, a
despeito da falta de estímulo. — Vocês mulheres não sabem tudo
—, disse o sr. Hall, decidido a descobrir mais sobre a personalidade
do hóspede, na primeira oportunidade. E depois que o estranho foi
deitar-se, mais ou menos às nove e meia, o sr. Hall entrou
agressivamente na sala, correu os olhos detidamente sobre os
móveis da mulher, só para mostrar que o estranho não era o dono
ali e examinou atentamente e com certo desprezo uma folha de
computação matemática que o homem deixara. Quando foi dormir,
recomendou à sra. Hall que olhasse cuidadosamente a bagagem que
ia chegar no dia seguinte.
— Cuide de sua vida, Hall, que eu cuido da minha —
respondeu a sra. Hall.
Estava mais do que inclinada a responder bruscamente a
Hall porque o estranho pertencia, sem dúvida, a uma variedade
esquisita de estranhos e, em seu íntimo, não estava nem um pouco
segura a respeito dele. No meio da noite acordou de um sonho com
cabeças brancas enormes, parecidas com nabos, que a seguiam na
extremidade de pescoços intermináveis e que tinham enormes
olhos negros. Mas, sendo uma mulher sensata, afugentou seus
terrores, virou para o outro lado e adormeceu de novo.
3
AS MIL E UMA GARRAFAS
Foi assim que, a nove de fevereiro, no início do degelo,
aquela criatura extraordinária veio do desconhecido para a aldeia de
Iping. A bagagem chegou no dia seguinte, em meio à neve
semiderretida. E realmente era uma bagagem singular. Havia, de
fato, um par de malas como seriam necessárias a qualquer homem
racional, mas além disso havia uma caixa de livros — grandes e
grossos, alguns dos quais em uma escrita incompreensível, e talvez
mais de uma dúzia de engradados, caixotes e embrulhos, contendo
objetos acondicionados em palha que pareceram a Hall, que puxava
a palha com uma vaga curiosidade, garrafas de vidro. O estranho,
embuçado em um casaco, chapéu, luvas e cachecol, saiu,
impaciente, ao encontro da carroça de Fearenside, enquanto Hall
trocava um ou dois dedos de prosa, preparando-se para ajudar a
levar as coisas para dentro. O homem saiu, sem notar o cachorro
de Fearenside que farejava, sem muito interesse, as pernas de Hall.
Andem com esses volumes — disse ele. — Já esperei demais.
E começou a descer os degraus em direção à traseira da
carroça, como se fosse pegar um dos caixotes menores.
Mas assim que o cachorro de Fearenside o avistou,
começou a eriçar-se e a rosnar selvagemente e quando ele
precipitou-se degraus abaixo, o cão deu um pulo hesitante, depois
saltou diretamente para a mão do estranho. — Opa! gritou Hall
pulando para trás, pois não era nenhum herói diante de cães. E
Fearenside deu um berro: — Deitado! — e apanhou o chicote.
Viram que os dentes do cachorro tinham escorregado da
mão, ouviram um pontapé, viram o cão dar um pulo para o lado
agarrando a perna do estranho e ouviram o barulho da calça
rasgando-se. Então a extremidade do chicote de Fearenside atingiu
o animal e este, ganindo de medo, escondeu-se atrás das rodas da
carroça. Tudo fora questão de meio minuto. Ninguém falou: todos
gritavam. O estranho lançou um rápido olhar para a luva rasgada e
para a perna, deu a impressão de que ia abaixar-se para vê-la, depois
voltou-se e subiu rapidamente os degraus e entrou na estalagem.
Ouviram-no apressar-se pelo corredor e subir a escada sem tapete
que levava a seu quarto.
— Você, seu estúpido, você! — disse Fearenside subindo
na carroça com o chicote na mão, enquanto o cachorro o
observava através dos aros da roda. — Venha cá! É bom que
venha!
Hall estava parado, de boca aberta. — Ele foi mordido
— disse. — É melhor ir ver como está — e afastou-se, seguindo os
passos do estranho. No corredor, encontrou a sra. Hall. — O
cachorro do carroceiro o mordeu — disse.
Foi diretamente para cima e, como a porta do hóspede
estivesse aberta, empurrou-a e ia entrando sem nenhuma cerimônia,
pois era naturalmente bondoso.
A veneziana estava descida, e o quarto na penumbra. Viu,
de relance, algo extremamente esquisito, o que parecia um braço
sem mão acenando em sua direção e um rosto constituído por três
grandes manchas imprecisas sobre um fundo branco, muito
parecido com a superfície de um amor-perfeito descorado. Então
foi atingido violentamente no peito, jogado para trás e a porta
fechada e trancada em sua cara, tudo tão depressa que não teve
tempo de assimilar coisa nenhuma. Um acenar de formas
indecifráveis, um galope e uma pancada. Ficou parado no pequeno
patamar escuro, imaginando o que poderia ter visto.
Passados uns dois minutos, juntou-se ao pequeno grupo
que se formara diante do "Coach and Horses". Ali estava
Fearenside contando tudo de novo, pela segunda vez; e a sra. Hall
reclamando que o cachorro dele não tinha o direito de morder seus
hóspedes; ali estava Huxter, o dono do armazém do outro lado da
estrada, curioso; e Sandy Wadgers, da forja, imparcial; além de
mulheres e crianças — todos dizendo tolices: — Não o deixaria me
morder, eu sei —; — Não é direito ter cachorros assim —; __Mas
então por que o mordeu? — e outras coisas no gênero.
O sr. Hall, contemplando-os do alto dos degraus e
ouvindo, começou a achar inacreditável que tivesse visto acontecer
alguma coisa muito extraordinária lá em cima. Além do mais, seu
vocabulário era demasiado limitado para comunicar suas
impressões.
— Ele diz que não quer ajuda — falou em resposta à
pergunta da mulher. — É melhor que levemos a bagagem para
dentro.
— Devia fazer uma cauterização imediatamente —
opinou o sr. Huxter. — Especialmente se a perna está inflamada.
— Eu daria um tiro no cão, é isso que faria — disse uma
mulher do grupo.
De repente, o cachorro começou a rosnar outra vez.
— Vamos com isso — gritou uma voz colérica à porta; e
ali estava o hóspede embuçado, com a gola virada para cima e a aba
do chapéu voltada para baixo. — Quanto mais depressa vocês
trouxerem essas coisas para dentro, mais satisfeito ficarei. — Um
espectador anônimo declarou depois que tinha mudado as calças e
luvas.
— Está machucado, senhor? — indagou Fearenside. —
Sinto muito que o cachorro.. .
— Nem um pouco — respondeu o estranho. — Nem
arranhou a pele. Andem depressa com essas coisas.
Depois, afirmou o sr. Hall, ele xingou baixinho.
Logo que o primeiro caixote foi levado à sala, de acordo
com as instruções dele, o estranho atirou-se sobre ele, com grande
ansiedade e começou a abri-lo, jogando a palaha para todos os
lados, sem a menor consideração pelo tapete da sra. Hall. E
começou a retirar garrafas — pequenas garrafas gordas, contendo
pós, garrafinhas esguias cheias de líquidos brancos e coloridos,
garrafas azuis caneladas, com etiquetas nas quais se lia "Veneno",
garrafas com bases arredondadas e gargalos finos, grandes garrafas
de vidro verde, grandes garrafas de vidro branco, garrafas com
tampas de vidro e marcadas com vidro fosco, garrafas com
pequenas rolhas, garrafas com tampas de madeira ou rolhas de
tonel, garrafas de vinho, garrafas de óleo de salada — colocando-as
em fila sobre o aparador, sobre o console, sobre a mesa embaixo da
janela, pelo chão, nas prateleiras das estantes — por todos os
lugares. A loja do farmacêutico em Bramblehurst não tinha nem a
metade. Era um espetáculo inédito. De caixote após caixote saíam
garrafas, até que os seis ficaram vazios e um monte de palha sobre a
mesa; as únicas coisas que saíram daqueles caixotes, além das
garrafas, foram numerosos tubos de ensaio e uma balança
cuidadosamente acondicionada.
Logo depois que os caixotes ficaram vazios, o estranho
foi até a janela e começou a trabalhar, sem dar a menor atenção à
palha jogada por todos os lados, ao fogo que tinha se apagado, à
caixa de livros ainda do lado de fora, ou às malas e ao resto da
bagagem que tinham carregado para cima.
Quando a sra. Hall levou-lhe a refeição, já estava tão
absorto no trabalho, pingando pequenas gotas que tirava das
garrafas para os tubos de ensaio, que nem a ouviu, até que ela
tivesse varrido o monte de palha e posto a bandeja sobre a mesa,
talvez com um pouco mais de barulho, ao ver o estado em que
estava o chão. Ele voltou ligeiramente a cabeça e logo desviou-a
outra vez. Porém deu para que visse que tinha tirado os óculos;
estavam a seu lado, sobre a mesa, e ela teve a impressão de que suas
órbitas eram extraordinariamente vazias. Logo recolocou os óculos
e depois virou-se e confrontou-a. A estalajadeira estava prestes a
reclamar da palha pelo chão, quando ele se adiantou.
— Gostaria que não entrasse sem bater — disse, no tom
de exasperação exagerada que parecia uma característica dele.
— Bati, mas pareceu-me...
— Talvez batesse. Mas, em minha pesquisa — uma
pesquisa realmente muito urgente e necessária — a menor
perturbação, o barulho de uma porta. . . Tenho que lhe pedir que...
— Certamente, senhor. Pode fechar a chave, se quiser, o
senhor sabe, a qualquer hora.
— Uma idéia muito boa — disse o estranho.
— Essa palha, senhor, se me permite observar.. .
— Não o faça. Se a palha a incomoda, inclua-a na conta.
— E continuou a murmurar, dirigindo-se a ela, palavras que
poderiam parecer xingamentos.
Estava tão esquisito, de pé, tão agressivo e enraivecido,
garrafa em uma das mãos e tubo de ensaio na outra, que a sra. Hall
ficou amedrontada. Mas era uma mulher decidida. — Nesse caso,
senhor, gostaria de saber o que consideraria.. .
— Um xelim. Acrescente um xelim. Decerto que um
xelim é o bastante?
— Está bem — concordou a sra. Hall, apanhando a
toalha e começando a desdobrá-la sobre a mesa. — Se isso lhe
convém, naturalmente.. .
Ele voltou-lhe as costas e sentou-se, com a gola do
casaco levantada na direção dela.
Durante toda a tarde trabalhou com a porta trancada e,
como afirmou a sra. Hall, em silêncio a maior parte do tempo. Mas
em uma ocasião houve uma pancada e o som de garrafas tilintando,
como se a mesa tivesse levado um encontrão; o barulho de uma
garrafa quebrada, por ter sido violentamente atirada no chão, e
depois o ruído de passos rápidos pela sala. Temendo que tivesse
acontecido alguma coisa, ela foi até a porta e escutou, sem se dar ao
trabalho de bater.
— Isso não pode continuar — resmungava o estranho
enfurecido. — Não pode continuar. Trezentos mil, quatrocentos
mil! Aquela multidão imensa! Fui enganado! Posso levar a vida
inteira! Paciência! Realmente, paciência! Tolo e mentiroso!
Houve um barulho de botas ferradas nos tijolos do bar e,
muito relutante, a sra. Hall teve que desistir de ouvir o resto do
monólogo. Quando voltou, a sala estava novamente em silêncio, a
não ser pelos breves estalidos da cadeira dele, e o tilintar ocasional
de uma garrafa. Tudo tinha acabado. O estranho voltara ao
trabalho.
Quando ela lhe levou o chá, viu vidro quebrado sob o
espelho côncavo e uma mancha dourada que fora limpa
descuidada-mente. Chamou a atenção para aquilo.
— Ponha na conta — retrucou ele secamente. — Pelo
amor de Deus, não me aborreça. Se houver algum estrago, ponha
na conta —; e continuou conferindo uma lista, no caderno diante
dele.
— Vou lhe dizer uma coisa — confidenciou Fearenside
misteriosamente. A noite ia caindo e estavam na pequena cervejaria
"Iping Hanger".
— Então? — perguntou Teddy Henfrey.
— Esse sujeito de quem está falando, o que meu
cachorro mordeu. Bem... Ele é negro. Pelo menos as pernas são. Vi
através do rasgão na calça dele e na luva. Era de se esperar que
aparecesse algo rosado, não acha? Bem, não havia nada. Só
negrume. Estou lhe dizendo, é tão negro quanto meu chapéu.
— Por Deus! — exclamou Henfrey. — É um caso muito
extravagante. Ora, o nariz dele é tão cor-de-rosa que parece
pintado!
— É verdade — disse Fearenside. — Sei disso. E vou lhe
dizer o que penso. Aquele homem é malhado. Preto aqui e branco
acolá — em manchas. E tem vergonha disso. É uma espécie de
mestiço e a cor dele é manchada, em vez de misturada. Já ouvi falar
disso. É o que acontece com os cavalos, como qualquer um sabe.
4
O SR. CUSS ENTREVISTA O ESTRANHO
Contei as circunstâncias da chegada do estranho a Iping
com uma certa profusão de detalhes para que o leitor compreenda a
curiosa impressão que causou. Mas, com exceção de dois incidentes
fora do comum, os pormenores de sua estadia podem ser
mencionados muito superficialmente, até o extravagante dia do
Festival do Clube. Houve inúmeras escaramuças com a sra. Hall no
campo da disciplina doméstica, mas até o fim de abril, quando
começaram os primeiros sinais de penúria, ele a derrotava com o
fácil expediente de um pagamento extra. Hall não o apreciava e
toda a vez que ousava, falava da conveniência de se livrarem dele;
mas manifestava sua antipatia principalmente dissimulando-a
ostensivamente e evitando o visitante tanto quanto possível. —
Espere até o verão — dizia a sra. Hall, conciliadora — até que os
artistas comecem a chegar. Então, veremos. Ele talvez seja um
tanto arrogante, mas contas pagas em dia são contas pagas em dia,
diga você o que quiser.
O estranho não ia à igreja e, na verdade, não fazia a
menor diferença, nem em seu vestuário entre o domingo e os
outros dias não religiosos. Trabalhava, na opinião da sra. Hall, sem
a menor regularidade. Alguns dias descia cedo e atarefava-se sem
parar. Em outros, levantava-se tarde, andava pelo quarto,
resmungando alto, horas a fio, fumava, e dormia na poltrona junto
à lareira. Não tinha a menor comunicação com o mundo para além
da aldeia. Seu humor continuava a ser imprevisível; a maior parte
do tempo tinha a atitude de um homem que sofria uma provação
quase insuportável e, de vez em quando, partia, arrancava,
esmagava ou quebrava coisas, em acessos espasmódicos de
violência. Parecia viver sob uma irritação crônica, da maior
intensidade. O hábito de falar sozinho em voz baixa ia se
agravando cada vez mais, porém, embora a sra. Hall ouvisse
atentamente, tudo lhe parecia sem pé nem cabeça.
Raramente saía durante o dia mas, ao cair da tarde,
tremendamente embuçado, quer o tempo estivesse frio ou não,
fazia-o, escolhendo os caminhos mais desertos e sombreados por
árvores ou encostas. Seus óculos enormes e o horrível rosto
enfaixado, sob o toldo do chapéu, surgiam da escuridão repentina e
desagradavelmente diante de um ou outro trabalhador a caminho
de casa; e Teddy Henfrey, tropeçando à saída do "Scarlet Coat",
uma noite, às nove e meia, assustou-se vergonhosamente com a
cabeça do estranho, que parecia uma caveira (estava caminhando de
chapéu na mão), subitamente iluminada pela luz da porta aberta. As
crianças que o viam à noite sonhavam com fantasmas e era
discutível se ele detestava os garotos mais do que estes o
detestavam, ou o inverso — mas, certamente, havia uma aversão
bem definida de ambos os lados.
Era fatal que uma pessoa de aparência e comportamento
tão incomuns se tornasse assunto freqüente em uma aldeia como
Iping. As opiniões estavam muito divididas quanto à sua ocupação.
A sra. Hall era suscetível nesse ponto. Quando interrogada,
explicava cautelosamente enunciando as sílabas com cuidado, como
quem teme algum perigo oculto, que ele era um "pesquisador
experimental". Quando lhe perguntavam o que significava ser um
pesquisador experimental respondia, com um toque de
superioridade, que a maioria das pessoas instruídas sabia e então
explicava que "descobria coisas". Seu hóspede sofrerá um acidente,
dizia, que havia, temporariamente, lhe arroxeado o rosto e as mãos;
e como era sensível, evitava exibir publicamente o fato.
Longe dos ouvidos dela, havia a opinião geralmente
aceita de que era um criminoso tentando fugir da justiça e
enrolando-se de tal forma que se ocultaria completamente dos
olhos da polícia. A idéia surgira da mente do sr. Teddy Henfrey.
Mas não se sabia da ocorrência de nenhum crime de qualquer
importância cometido em meados ou no final de fevereiro.
Elaborada na imaginação do sr. Gould, o novo assistente da Escola
Nacional, essa teoria apontava o estranho como um anarquista
disfarçado que preparava explosivos e resolveu empreender
operações de investigação, de acordo com sua disponibilidade de
tempo. Em geral, estas consistiam, principalmente, em olhar o
desconhecido com muita atenção, sempre que se encontravam, ou
em fazer perguntas a respeito dele a pessoas que nunca o haviam
visto. Mas não descobriu nada.
Outra escola de pensamento seguia o sr. Fearenside e
aceitava a teoria de que era malhado ou coisa semelhante; como,
por exemplo, Silas Durgan, que tinham ouvido assegurar que "se
ele quisesse exibir-se nas feiras, faria fortuna em um piscar de
olhos" e sendo um pouco teólogo comparava-o com o homem que
só tinha um talento. E ainda uma outra corrente de opinião
explicava o caso todo considerando o estranho como um maluco
inofensivo. Isso tinha a vantagem de justificar tudo, sem maiores
especulações.
Entre os grupos principais, havia os indecisos e os
acomodados. O povo de Sussex tem poucas superstições e só
depois dos acontecimentos do início de abril a cogitação do
sobrenatural foi murmurada pela primeira vez na aldeia. Mesmo
assim, só as mulheres acreditaram nisso.
Mas, o que quer que pensassem, todos os habitantes de
Iping concordavam plenamente em sua repulsa a ele.
A irritabilidade que demonstrava, embora pudesse ser
compreensível para um trabalhador intelectual urbano, era
surpreendente para aqueles calmos aldeões de Sussex. A
gesticulação frenética que presenciavam vez por outra, o caminhar
apressado depois que a noite caía, ultrapassando-os velozmente em
cantos escuros, a brutalidade desumana com que rechaçava todas as
tímidas tentativas de curiosidade, o gosto pela penumbra que levava
ao fechar de portas, abaixar de venezianas e à extinção de velas e
lampiões — quem poderia concordar com tudo aquilo? Davam-lhe
passagem quando atravessava a aldeia, mas quando se ia, os jovens
humoristas levantavam a gola dos casacos, abaixavam a aba dos
chapéus e seguiam-no em passadas nervosas, imitando-lhe o jeito
furtivo. Naquela época, havia uma canção muito popular, chamada
o "Homem Fantasma"; a srta. Statchell a tinha cantado em um
concerto na sala de aula da escola (a fim de ajudar a angariar fundos
para a iluminação da igreja) e, daí por diante, todas as vezes em que
dois ou mais aldeões estavam reunidos e o estranho aparecia,
sempre algum deles assoviava um ou dois compassos da canção,
mais ou menos agudos ou graves. E as criancinhas que tinham se
atrasado também lhe gritavam "Homem Fantasma!" e fugiam,
medrosamente alvoroçadas.
Cuss, o clínico-geral, estava roído pela curiosidade. As
ataduras excitavam-lhe o interesse profissional e as mil e uma
garrafas despertavam-lhe um respeito invejoso. Durante todo o mês
de abril e o de maio, ansiou por uma oportunidade de falar com o
estranho; até que, ao se aproximar a festa de Pentecostes, não pôde
agüentar mais e arranjou a desculpa de uma lista de contribuições
para contratar uma enfermeira para a aldeia. Ficou surpreso ao
descobrir que o sr. Hall desconhecia o nome de seu hóspede. "Ele
deu um nome" — disse a sra. Hall, numa afirmativa completamente
infundada — mas não ouvi direito. — Achava que pareceria uma
idiotice não saber o nome do homem.
O sr. Cuss bateu na porta da sala e entrou. De dentro,
veio uma imprecação perfeitamente audível. — Perdoe minha
intromissão — desculpou-se e então a porta fechou-se e a sra. Hall
foi excluída do resto da conversa.
Ouviu o murmúrio de vozes nos dez minutos seguintes,
um arrastar de pés, uma cadeira atirada para o lado, um riso curto,
passos apressados até a porta e Cuss apareceu, o rosto lívido,
olhando fixamente para trás, por cima do ombro. Deixou a porta
aberta e. sem sequer relancear para ela, passou pelo corredor;
desceu os degraus e seguiu-se o ruído de passos caminhando
velozmente pela escada. Levava o chapéu na mão. Ela deixou-se
ficar, atrás da porta aberta, olhando para a sala. Depois ouviu o
estranho rindo baixinho e seus passos atravessaram o aposento. De
onde estava, não podia ver-lhe o rosto. A porta da sala bateu, e
tudo ficou em silêncio outra vez.
Cuss foi direto à aldeia, procurar Bunting, o vigário. —
Estarei louco? — foi dizendo bruscamente, ao entrar no pequeno
escritório humilde. — Tenho cara de maluco?
— Que aconteceu? — perguntou o vigário, pondo um
peso sobre as folhas soltas de seu próximo sermão.
— O sujeito da estalagem. ..
— Bem?
— Dê-me alguma coisa para beber — pediu Cuss,
sentando-se.
Quando seus nervos se acalmaram, graças a um copo de
xerez barato — a única bebida de que o vigário dispunha —
contou-lhe a entrevista que acabara de ter. — Entrei — arfou — e
comecei a pedir uma contribuição para o Fundo destinado a pagar a
enfermeira. Tinha posto as mãos nos bolsos quando me viu e
estava todo curvado na cadeira. Fungou. Disse-lhe que sabia do
interesse que tinha pelas coisas ligadas à ciência. Concordou.
Fungou de novo. Ficou fungando o tempo todo, evidentemente
presa recente de um forte resfriado. Não é de admirar, agasalhado
daquela forma! Expus a idéia de se ter uma enfermeira, mantendo,
ao mesmo tempo, os olhos bem abertos. Garrafas — preparados
químicos — por todos os lados. Balança, tubos de ensaio suspensos
e um cheiro de. .. prímulas noturnas. Estaria disposto a contribuir?
Disse que pensaria no assunto. Perguntei a ele, diretamente, se
estava fazendo pesquisas. Respondeu que sim. Uma pesquisa
demorada? Ficou muito irritado. "Um diabo de pesquisa, muito
longa" falou, estourando, por assim dizer. — Oh — disse eu. Ele
desabafou. O homem estava prestes a perder o controle e minha
pergunta fez com que explodisse. Tinham-lhe dado uma receita,
uma receita muito importante — não disse para quê. Era uma
receita médica? "Vá para o inferno! Que está tentando descobrir?"
Pedi desculpas. Fungou com seriedade e tossiu. Falou de novo. Ele
a tinha lido. Cinco ingredientes. Tinha-a largado e voltado a cabeça.
Uma corrente de ar que vinha da janela tinha carregado o papel.
Houve um silvo, um farfalhar. Estava trabalhando em uma sala
com uma lareira aberta, continuou. Viu um lampejo, e lá estava a
receita, queimando e flutuando chaminé acima. Correu para ela no
momento em que desaparecia pela chaminé. Foi isso! Justamente
nesse ponto, para ilustrar a história, fez um gesto com o braço.
— Bem?
— Não tinha mão — só a manga vazia. Deus! pensei, que
aleijão! Com certeza tem um braço postiço, suponho, e tirou-o.
Depois, pensei, há alguma coisa estranha aqui. Que diabo mantém a
manga levantada e aberta, se não há nada nela? Não havia nada
nela, estou lhe dizendo. Nada, de cima a baixo, até a articulação.
Podia ver até o cotovelo, e havia um raio de luz brilhando através
de um rasgão na fazenda. — Deus do Céu! — exclamei. Aí ele
parou. Olhou-me fixamente, com aqueles óculos escuros e depois
olhou a manga.
— Bem?
— É só. Não disse uma palavra; olhou-me fixamente e
pôs depressa a manga no bolso. "Dizia", prosseguiu, "que lá estava
a receita sendo queimada, não é"? Tossiu interrogativamente. —
Que diabo — indaguei — como pode mover uma manga vazia
assim? — "Manga vazia?" — Sim — insisti — uma manga vazia.
"É uma manga vazia, é? O senhor viu que era uma manga
vazia?" Levantou-se imediatamente. Levantei-me também. Veio em
minha direção em três passos bem lentos e parou muito perto.
Fungou furiosamente. Não vacilei, embora queira cair morto se
aquela cabeça enfaixada e aqueles óculos não forem o suficiente
para acovardar qualquer um, vindo silenciosamente para uma
pessoa.
"O senhor disse que era uma manga vazia?" — repetiu.
— Sem dúvida — confirmei. Só em ficar olhando, sem dizer nada,
um homem de cara limpa e sem óculos começa a sentir-se inquieto.
Então, muito calmamente, ele tirou a manga do bolso e levantou o
braço para mim, como se quisesse mostrá-lo de novo. E o fez
muito, muito devagar. Olhei para aquilo. Pareceu-me um século. —
Então? — disse eu, pigarreando — não há nada aí. — Tinha que
dizer alguma coisa. Estava começando a ficar assustado. Podia
enxergar do começo ao fim. Ele estendeu-a diretamente para mim,
lentamente, lentamente — assim mesmo — até que o punho ficou
a centímetros do meu rosto. É esquisito ver uma manga vazia
aproximar-se da gente daquela forma! E então...
— Bem?
— Alguma coisa — cujo contato era exatamente como o
de um dedo e um polegar — beliscou meu nariz.
Bunting começou a rir.
— Mas não havia nada ali! — protestou Cuss, a voz se
tornando aguda, quase um grito, ao dizer "ali". — O senhor pode
rir, mas estou lhe dizendo, fiquei tão apavorado que golpeei o
punho dele com força, dei meia-volta e fugi da sala — deixei-o. ..
Cuss fez uma pausa. Não havia dúvida quanto à
sinceridade de seu pânico. Voltou-se, transtornado, e tomou um
segundo copo do excelente xerez muito ordinário do pároco. —
Quando atingi o punho dele — concluiu Cuss —, asseguro-lhe que
senti exatamente como se estivesse batendo em um braço. Mas não
havia braço! Não havia nem sombra de um braço!
O sr. Bunting refletiu. Olhou, desconfiado, para Cuss. —
É uma história totalmente fora do comum — comentou. Tinha
uma expressão muito sábia e grave. — Na verdade — repetiu o sr.
Bunting, cautelosamente enfático — uma história totalmente fora
do comum.
5
O ROUBO NO PRESBITÉRIO
Os fatos do roubo na casa paroquial chegaram a nós
principalmente através do pastor e de sua esposa. Aconteceu na
madrugada da segunda-feira de Pentecostes — o dia dedicado às
festividades do Clube em Iping. Parece que a sra. Bunting tinha
acordado de repente, no silêncio que precede o amanhecer, com a
forte impressão de que a porta do quarto do casal havia sido aberta
e fechada. A princípio, não acordou o marido, mas sentou-se na
cama, atenta. Depois, ouviu nitidamente o arrastar de pés descalços
saindo do quarto de vestir ao lado e andando pelo corredor até a
escada. Tão logo teve certeza disso, acordou o sr. Bunting, fazendo
o menor barulho possível. Este não acendeu a luz, mas pondo os
óculos, o roupão da mulher e seus chinelos, foi até o patamar e
ficou escutando. Ouviu distintamente remexerem na mesa do
escritório no andar inferior e depois um espirro violento.
Diante disso, voltou ao quarto, armou-se com a arma
mais óbvia, o atiçador, e desceu a escada tão silenciosamente
quanto pôde. A sra. Bunting saiu para o patamar.
Eram cerca de quatro horas e a escuridão fechada da
noite se fora. Havia um leve reflexo de luz no vestíbulo, mas a
porta do escritório estava escancarada para uma obscuridade
impenetrável. Tudo continuava quieto e só se ouvia o ligeiro ranger
dos degraus sob os passos do sr. Bunting e os movimentos quase
imperceptíveis no escritório. Então, alguma coisa estalou, a gaveta
abriu-se e houve um farfalhar de papéis. Depois disso uma
imprecação, um fósforo acendeu-se e inundou o escritório com sua
luz amarelada. O sr. Bunting, já no vestíbulo, viu, através de uma
fresta da porta, a escrivaninha com a gaveta aberta e uma vela
ardendo sobre a mesa. Mas não conseguia ver o ladrão. Ficou
parado ali, sem saber o que fazer e a sra. Bunting, pálida e hesitante,
desceu lentamente a escada para juntar-se a ele. Só uma coisa
mantinha a coragem do sr. Bunting: a certeza de que aquele ladrão
era um morador da aldeia.
Ouviram o tilintar de dinheiro e compreenderam que o
ladrão tinha encontrado a reserva doméstica de ouro — duas libras
e dez, tudo em meios soberanos. A este som, o sr. Bunting animouse
a tomar uma atitude drástica. Segurando o atiçador com firmeza,
precipitou-se para o cômodo, seguido de perto pela sra. Bunting.
— Renda-se — gritou o sr. Bunting ferozmente e parou, surpreso:
a sala estava completamente vazia.
Entretanto, a impressão de ambos, de que tinham,
naquele exato momento, ouvido alguém mover-se na sala,
transformou-se em certeza. Ficaram de boca aberta, talvez por
meio minuto e então a sra. Bunting atravessou o aposento e olhou
atrás das cortinas, enquanto o sr. Bunting, levado por um impulso
semelhante, olhava embaixo da mesa. A sra. Bunting descerrou as
cortinas e o sr. Bunting olhou pela chaminé, experimentando-a com
o atiçador. Aí a sra. Bunting examinou a cesta de papéis e o sr.
Bunting abriu a tampa do depósito de carvão. E detiveram-se,
olhando um para o outro interrogativamente.
— Poderia jurar... — começou a sra. Bunting.
— A vela! — exclamou o sr. Bunting. — Quem acendeu
a vela?
— A gaveta! — secundou-o a sra. Bunting. — E o
dinheiro sumiu! — Apressadamente, foi até a porta.
— Foi a coisa mais estranha...
Ouviram um espirro alto, no corredor. Saíram correndo
e, no mesmo momento, a porta da cozinha bateu com estrondo. —
Traga a vela — disse o sr. Bunting, e foi na frente. Ambos
escutaram o som de ferrolhos precipitadamente abertos.
Quando ele puxou a porta da cozinha viu, além da pia,
que a porta dos fundos estava se abrindo e a luz fraca do início da
manhã só mostrava as moitas escuras do jardim do lado de fora.
Tinha a certeza de que nada havia saído pela porta. Porém esta
abriu-se, ficou aberta um instante e depois fechou-se
violentamente. Nesse instante a vela do escritório que a sra.
Bunting estava carregando tremeluziu e brilhou de novo. Passou-se
mais de um minuto antes que entrassem na cozinha.
Estava vazia. Fecharam novamente a porta dos fundos,
examinaram a cozinha, despensa e copa minuciosamente e, por fim,
desceram ao porão. Não havia uma alma na casa, por mais que
procurassem.
A luz do dia encontrou o vigário e a mulher, um parzinho
vestido com roupas antiquadas, ainda assombrado em sua
propriedade, à luz desnecessária de uma vela gotejante.
6
OS MÓVEIS QUE FICARAM LOUCOS
Aconteceu que, nas primeiras horas da segunda-feira de
Pentecostes, antes que Millie fosse procurada para fazer o trabalho
do dia, o sr. e sra. Hall levantaram-se e desceram silenciosamente à
adega. O propósito de ambos era de natureza particular e tinha algo
a ver com a densidade específica da cerveja. Mal tinham entrado,
quando a sra. Hall percebeu que havia se esquecido de trazer uma
garrafa de salsaparrilha do quarto de ambos. Como era perita e a
principal operadora naquele assunto, o sr. Hall, justificadamente,
subiu para buscá-la.
No patamar, ficou surpreso ao ver que a porta do
estranho estava escancarada. Entrou em seu quarto e achou a
garrafa onde lhe fora indicado.
Mas, ao voltar com ela, notou que os ferrolhos da porta
da frente tinham sido abertos e que a porta, estava, de fato, fechada
apenas com a lingüeta da fechadura. Em um lampejo de inspiração,
associou aquilo ao quarto do estranho em cima e às insinuações do
sr. Teddy Henfrey. Lembrava-se perfeitamente de que tinha ficado
segurando a vela enquanto a sra. Hall aferrolhava a porta para a
noite. Ao ver aquilo deteve-se, boquiaberto e, ainda com a garrafa
na mão, voltou para cima. Bateu na porta do estranho. Não houve
resposta. Bateu outra vez; depois empurrou-a e entrou.
Era o que esperava. A cama, e também o quarto, estavam
vazios. E o que era de espantar, mesmo a sua inteligência meio
lerda, na cadeira e nos pés da cama havia roupas espalhadas, as
únicas roupas que, até onde sabia, o hóspede tinha, e suas ataduras.
Até o grande chapéu macio estava colocado jovialmente em um dos
pés da cama.
Enquanto estava parado ali, ouviu a voz da mulher, vinda
das profundezas da adega, com a rápida superposição das sílabas e
a escala crescente e interrogativa das palavras finais até um som
agudo, uma forma através da qual o nativo de West Sussex costuma
manifestar uma grande impaciência. — George! Pegou o que pedi?
Diante disso, deu meia-volta e apressou-se a ir até ela. —
Janny — disse por cima do corrimão da escada para a adega — o
que Henfrey diz é verdade. Ele não está no quarto, não está. E a
porta da frente está desaferrolhada.
A princípio a sra. Hall não entendeu, mas, logo que o fez,
resolveu ver por si mesma o quarto vazio. Hall, ainda segurando a
garrafa, foi na frente. — Ele não está lá, mas as roupas estão. E que
estará fazendo sem roupas? É um negócio muito curioso.
Quando subiram os degraus da adega, ambos, como foi
confirmado posteriormente, pensaram ter ouvido a porta da frente
abrir-se e fechar-se mas, ao vê-la fechada e nada por ali, não
disseram nem uma palavra um ao outro na ocasião. A sra. Hall
ultrapassou o marido no corredor e foi a primeira a subir correndo
a escada. Alguém espirrou. Hall, seguindo-a seis passos atrás,
pensou que a ouvira espirrar. Ela, andando na frente, teve a
impressão de que Hall tinha espirrado. Abriu completamente a
porta e ficou olhando o quarto. — Que coisa esquisita! — disse.
Ouviu outro espirro que parecia perto da cabeça dela e,
voltando-se, ficou surpresa ao ver Hall a uns três metros, no último
degrau da escada. Mas, logo depois, chegou a seu lado. Ela
inclinou-se e pôs a mão no travesseiro e depois embaixo das
roupas.
— Estão frios — disse. — Levantou-se há uma hora ou
mais.
Ao fazê-lo, aconteceu uma coisa realmente extraordinária
— a roupa de cama juntou-se sozinha, atirou-se para o alto de
repente, em uma espécie de monte e depois pulou diretamente por
cima dos pés da cama. Era como se uma mão a tivesse agarrado
pelo meio e jogado para o lado. Logo depois, o chapéu do estranho
saltou do pé da cama e, descrevendo uma trajetória revoluteante
pelo ar, quase um círculo completo, atirou-se diretamente no rosto
da sra. Hall. Depois veio a esponja do lavatório; em seguida a
cadeira, deixando cair para o lado, descuidadamente, o casaco e as
calças do estranho e, rindo secamente, em uma voz muito parecida
com a dele, a cadeira virou para cima, com as quatro pernas para o
ar; por um momento pareceu fazer pontaria na direção da sra. Hall
e precipitou-se para ela. Gritando, ela virou-se e as pernas da
cadeira tocaram-lhe as costas, sem brutalidade, mas com firmeza, e
empurraram-na, juntamente com Hall, para fora do quarto. A porta
fechou-se violentamente e foi trancada. Durante algum tempo a
cadeira e a cama pareceram estar executando uma dança triunfal e
depois, abruptamente, tudo cessou.
A sra. Hall ficou no patamar, quase desmaiada nos braços
de Hall. Foi com a maior dificuldade que ele e Millie, que fora
acordada por seus gritos de alarma, conseguiram levá-la para baixo
e dar-lhe os reconstituintes habituais nesses casos.
— Foram os espíritos — disse a sra. Hall. — Sei que
foram os espíritos. Já li nos jornais a respeito deles. Mesas e
cadeiras pulando e dançando!...
— Tome mais uma gota, Janny — insistiu Hall. — Vai
acalmar você.
— Deixem-no do lado de fora — disse a sra. Hall. —
Não permitam que entre outra vez. Bem que desconfiei. . . Devia
saber. Com os olhos esbugalhados e a cabeça enfaixada e nunca
indo
à igreja aos domingos. E todas aquelas garrafas — muito
mais de que qualquer um tem o direito de ter. Foi ele quem pôs
espíritos nos móveis. Meus móveis antigos tão bons! Era naquela
cadeira que minha mãe costumava sentar-se quando eu era
pequena. Pensar que pôde erguer-se contra mim!
— Só mais uma gota, Janny — disse Hall. — Seus nervos
estão em frangalhos.
Mandaram Millie do outro lado da rua, à luz dourada das
cinco da manhã, para acordar o sr. Sandy Wadgers, o ferreiro. Que
transmitisse os cumprimentos do sr. Hall e dissesse que os móveis
no segundo andar estavam procedendo como loucos. Poderia o sr.
Wadgers ir até lá? Era um homem bem informado, o sr. Wadgers, e
fértil em recursos. Este considerou o caso com muita seriedade. —
Quero ir para o inferno se isso não é feitiçaria — foi a opinião do
sr. Sandy Wadgers. — É preciso ter ferraduras para um espírito
assim.
Ele foi, muito preocupado. Queriam dar-lhe a
precedência na subida até o quarto, mas não parecia ter nenhuma
pressa. Preferiu conversar no corredor. O ajudante de Huxter, do
outro lado da rua, começou a retirar os anteparos da vitrine da
tabacaria. Chamaram-no para participar da discussão.
Naturalmente, o sr. Huxter seguiu-o logo depois. O gênio anglosaxão
para o parlamentarismo reafirmou-se; houve muitos debates,
mas nenhuma ação decisiva. — Primeiro, vamos aos fatos —
insistia o sr. Sandy Wadgers. — Precisamos estar seguros de que
agiremos com toda a razão, ao arrombar aquela porta. Uma porta
não arrombada é sempre passível de ser arrombada, mas não se
pode desarrombar uma porta que já tenha sido arrombada.
E, de súbito, fantasticamente, a porta do quarto de cima
abriu-se sozinha e, ao olharem para o alto, assombrados, viram a
figura embuçada do estranho descendo as escadas, fitando-os mais
sombrio e carrancudo do que nunca através daqueles seus enormes
e absurdos olhos de vidro azul. Descia rigidamente e devagar, com
o olhar fixo; assim caminhou pelo corredor e depois parou.
— Vejam ali! — apontou, e os olhos de todos seguiram a
direção indicada pelo dedo enluvado e viram uma garrafa de
salsaparrilha junto à porta da adega. Então entrou na sala e
bruscamente, rapidamente, violentamente, bateu-lhes com a porta
na cara.
Ninguém disse uma palavra até que o eco da porta batida
tivesse se dissipado. Entreolharam-se. — Ora, se isso não é o
máximo! — exclamou o sr. Wadgers, sem mencionar a alternativa.
— Se fosse comigo, iria perguntar a ele sobre o que
acontece — disse Wadgers ao sr. Hall. — Exigiria uma explicação.
Levou algum tempo até que o marido da estalajadeira se
animasse. Afinal bateu na porta, abriu, e só conseguiu dizer —
Com licença.. .
— Vá para o inferno! — berrou o estranho em voz
estrondosa, e: — Feche a porta quando sair. — Assim terminou
aquela breve entrevista.
7
A DESCOBERTA DO ESTRANHO
O estranho entrou na pequena sala da "Coach and
Horses" por volta das cinco e meia da manhã e ali permaneceu até
quase meio-dia, as persianas descidas, a porta fechada e ninguém,
depois da expulsão de Hall, aventurou-se a chegar perto dele.
Durante todo esse tempo, devia ter jejuado. Tocou a
campainha três vezes, a terceira furiosa e continuadamente, mas
ninguém o atendeu. — Ele e os dele que vão para o inferno! —
disse a sra. Hall. Mais tarde, espalhou-se o boato, um tanto
adulterado, do roubo na casa paroquial e somaram dois e dois. Hall,
acompanhado por Wadgers, saiu à procura do juiz, sr. Shuckleforth,
para pedir-lhe conselhos. Ninguém ousava subir. Não se sabia em
que o estranho estava se ocupando. De vez em quando andava
ruidosamente de um lado para outro e, por duas vezes, ouviu-se
uma explosão de imprecações, um rasgar de papéis e uma violenta
quebra de garrafas.
O pequeno grupo assustado, porém curioso, continuava
aumentando; a sra. Huxter apareceu; alguns jovens alegres,
esplêndidos em seus paletós negros comprados prontos e gravatas
de papel crepom, pois era segunda-feira de Pentecostes, reuniramse
ao grupo, fazendo perguntas confusas. O jovem Archie Harker
destacou-se, indo até o pátio e tentando olhar pelas venezianas.
Não podia ver nada, mas permitiu que pensassem que podia e,
pouco a pouco, outros membros da juventude de Iping juntaram-se
a ele.
Aquela era a melhor de todas as segundas-feiras de
Pentecostes e ao longo da rua da aldeia havia uma fileira de perto
de uma dúzia de barracas e uma galeria de tiro e, no gramado ao
lado da forja, viam-se três vagões amarelos e cor de chocolate e
alguns desconhecidos pitorescos de ambos os sexos, organizando
um balcão de tiro. Os cavalheiros vestiam blusas de malha azul e as
senhoras exibiam túnicas brancas e chapéus muito modernos, com
pesadas plumas. Wodger, do "Purple Fawn" e o sr. Jaggers, c
sapateiro, que também vendia bicicletas ordinárias de segunda mão,
estavam estendendo um cordão de bandeiras inglesas e insígnias
reais (que, primitivamente tinham servido para festejar o jubileu),
de um lado a outro da rua.
E do lado de dentro, na escuridão artificial da sala, na
qual só penetrava um fraco raio de sol, o estranho, faminto e
amedrontado, envolto em agasalhos quentes e incômodos, lia
atentamente seus papéis através dos óculos escuros, ou
entrechocava suas garrafinhas sujas e, de vez em quando, xingava
selvagemente os rapazes lá fora, audíveis ainda que invisíveis. No
canto, junto à lareira., jaziam os fragmentos de meia dúzia de
garrafas quebradas e um cheiro penetrante de cloro impregnava o
ar. Soube-se disso pelo que se ouviu na ocasião e pelo que,
subseqüentemente, se viu na sala.
Por volta de meio-dia ele abriu a porta subitamente e
parou, encarando com o olhar fixo as três ou quatro pessoas no
bar. — Sra. Hall — chamou. Alguém saiu e, timidamente, chamou
a sra. Hall.
Após algum tempo, esta apareceu, um tanto sem fôlego
mas, por isso mesmo, mais irritada. Hall ainda não tinha chegado.
Ela havia refletido sobre os acontecimentos e foi até o hóspede
levando uma pequena bandeja com uma conta que não havia sido
paga.
— Está querendo sua conta, senhor? — perguntou.
— Por que não trouxe o café da manhã? Por que não
preparou minhas refeições nem respondeu à campainha? Acha que
vivo sem comer?
— Por que minha conta não foi paga? — desafiou-o a
sra. Hall. — Isso é o que quero saber.
— Há três dias disse-lhe que estava aguardando uma
remessa. . .
— Há dois dias disse-lhe que não ia esperar remessas.
Não pode reclamar se espera um pouco pelo café se minha conta
está esperando há cinco dias, pode?
O estranho praguejou brevemente, mas com vigor.
— Epa, epa — disseram no bar.
— E agradeceria muito, senhor, se guardasse seus
xingamentos para o senhor mesmo.
O estranho continuou imóvel parecendo, mais do que
nunca, um escafandrista zangado. No bar, todos sentiram que a sra.
Hall estava levando vantagem. As palavras dele, a seguir, o
demonstraram.
— Olhe aqui, minha boa mulher. ..
— Não me venha com essa de boa mulher — retrucou a
sra. Hall.
— Já lhe disse que a remessa de dinheiro não chegou. . .
— Que remessa!
— Porém, acho que em meu bolso. ..
— O senhor me disse, há dois dias, que não tinha mais
que um soberano em níqueis.
— Bem, achei mais alguns...
— Opa! — ouviu-se no bar.
— Só queria saber onde os encontrou! — disse a sra.
Hall. Isso pareceu aborrecer muito o estranho. Bateu com o pé no
chão. — Que quer dizer? — perguntou.
— Que queria saber onde os encontrou — repetiu a sra.
Hall.
— E antes que eu receba qualquer conta, sirva qualquer
café, ou faça qualquer outra coisa, o senhor tem que me explicar
uma ou duas coisas que não compreendo, nem eu nem ninguém e
todos têm muita vontade de entender. Quero saber o que andou
fazendo com minhas cadeiras lá em cima e quero saber como
entrou novamente se seu quarto estava vazio. As pessoas que se
hospedam aqui entram pelas portas — essa é uma regra da casa e o
senhor não o fez e o que quero saber é como entrou. E quero
saber. ..
De repente, o estranho ergueu as mãos enluvadas e
cerradas, bateu com os pés no chão e gritou: — Pare! — com tal
violência que silenciou-a instantaneamente.
— A senhora não sabe — disse ele — quem sou e o que
sou. Vou lhe mostrar. Por Deus! Vou lhe mostrar. — Colocou
então a mão espalmada sobre o rosto e retirou-a. O centro de seu
rosto tornou-se uma cavidade negra. — Tome — disse. Adiantouse
e entregou a sra. Hall algo que ela, de olhos fixos no rosto
metamorfoseado, aceitou automaticamente. Então, quando viu o
que era, deu um grito agudo, deixou-o cair e recuou, cambaleando.
O nariz — era o nariz do estranho! rosado e brilhante — rolou
para o chão.
Depois tirou os óculos e todos os presentes arquejaram
convulsivamente. Tirou o chapéu e, com um gesto brusco, puxou
as suíças e as ataduras. Por um momento estas resistiram. O súbito
arrepio de um pressentimento terrível percorreu o bar. — Oh, meu
Deus! — exclamou alguém. Então, elas se soltaram.
Foi pior ainda. A sra. Hall, em pé, de boca aberta,
aterrorizada, dava berros estridentes diante do que via e precipitouse
para a porta. Todos começaram a se mover. Estavam preparados
para cicatrizes, deformidades, horrores tangíveis, mas para o nada!
As ataduras e cabelos postiços voavam pelo corredor até o bar,
fazendo um rapazelho pular para evitá-los. Todos se atropelavam
descendo os degraus. Pois o homem que estava ali, gritando uma
explicação incoerente, era uma figura concreta até a gola do casaco
e dali — nada mais, nenhuma coisa visível!
Os habitantes da aldeia ouviram gritos e berros e,
olhando rua acima, viram a "Coach and Horses" expelir
violentamente seres humanos. Viram a sra. Hall cair e o sr. Teddy
Henfrey pular, para não cair por cima dela, e então ouviram os
guinchos apavorantes de Millie que, saindo de repente da cozinha
por causa do barulho e do tumulto, topara com o estranho sem
cabeça pelas costas.
Imediatamente, todos os que estavam na rua, o vendedor
de doces, o proprietário do tiro aos cocos e seu assistente, o
homem do balanço, menininhos e garotas, grã-finas rurais, moças
bonitas, os mais velhos de guarda-pó e ciganas de avental,
começaram a correr em direção à estalagem; e, em um lapso de
tempo miraculosamente curto uma multidão, talvez de umas
quarenta pessoas e aumentando rapidamente, começou a atropelarse,
vaiar, indagar, exclamar e dar palpites, em frente ao
estabelecimento da sra. Hall. Todos pareciam ansiosos por falar ao
mesmo tempo e o resultado era uma babel. Um pequeno grupo
amparava a sra. Hall que havia sido encontrada quase desfalecida.
Havia uma conferência em curso e o incrível depoimento de uma
espalhafatosa testemunha ocular. "Um fantasma!" "Então o que
tem andado fazendo?" "Não machucou a moça, não é?" "Atacou-os
com uma faca, creio." "Não tinha cabeça, estou lhe dizendo. Não é
um modo de falar, estou dizendo que não tinha cabeça mesmo!"
"Tolice! Foi algum truque de prestidigitação." "Tirou todas aquelas
faixas..."
Em sua luta para enxergar além da porta aberta, a
multidão formou uma cunha irregular, o ápice mais corajoso perto
da entrada da estalagem. "Ele ficou parado um momento, ouvi a
moça gritar e então voltou-se. Vi as saias dela desaparecerem e ele
foi atrás dela. Não levou dez segundos. Depois voltou com uma
faca na mão e um pão; ficou imóvel como se estivesse
contemplando alguma coisa. Agora há pouco. Passou por aquela
porta e entrou e, eu lhe digo, não tinha nenhuma cabeça. Por pouco
você não o via..."
Houve uma agitação atrás e o homem que falava afastouse
para um lado, para dar passagem a uma pequena procissão que
marchava resolutamente para a casa — primeiro o sr. Hall, muito
vermelho e decidido, depois o sr. Bobby Jaffers, o policial da aldeia,
e por fim o prudente sr. Wadgers. Vinham munidos de um
mandado.
Todos gritavam informações contraditórias sobre os mais
recentes acontecimentos. — Com cabeça ou sem cabeça tenho que
prendê-lo e é o que vou fazer — declarou Jaffers.
O sr. Hall subiu os degraus, foi direto à porta da sala e
abriu-a bruscamente. — Guarda — disse ele — cumpra seu dever.
Jaffers entrou, seguido por Hall e atrás deste, Wadgers.
Na penumbra, viram diante deles um corpo sem cabeça, com um
pedaço de pão mordido em uma das mãos enluvadas e uma fatia de
queijo na outra.
— É ele! — apontou o sr. Hall.
— Que diabo é isso? — A pergunta veio em tom de
reclamação irritada, de um ponto acima do colarinho da figura.
— O senhor é um sujeito muito esquisito, senhor —
disse o sr. Jaffers. — Mas com cabeça ou sem cabeça, o mandado
diz "corpo" e dever é dever...
— Afaste-se! — disse o vulto, recuando.
Subitamente, deixou cair o pão e o queijo e o sr. Hall
pegou a faca em cima da mesa bem a tempo de guardá-la. A luva
esquerda foi retirada e esbofeteou o rosto de Jaffers. No momento
seguinte, Jaffers, interrompendo uma declaração sobre o mandado,
pegou-o pelo pulso sem mão e agarrou a garganta invisível. Levou
uma violenta canelada que o fez gritar, porém não a largou. Hall
escorregou a faca sobre a mesa para Wadgers, que agiu, por assim
dizer, como um goleiro na ofensiva, e deu um passo à frente,
enquanto Jaffers e o estranho oscilavam e tropeçavam em direção a
ele, embolados e trocando golpes. Uma cadeira que estava no
caminho foi atirada para o lado, espatifando-se, quando caíram
juntos.
— Segurem os pés — murmurou Jaffers entre dentes.
O sr. Hall, tentando obedecer às instruções, recebeu um
violento soco nas costelas, o que o deteve por um momento e o sr.
Wadgers, vendo que o estranho decapitado tinha rolado e estava
por cima do sr. Jaffers, bateu em retirada para a porta e por isso
colidiu com o sr. Huxter e o carroceiro de Siddermorton que
tinham acorrido para ajudar a lei e a ordem. No mesmo instante,
três ou quatro garrafas caíram do aparador, espalhando um cheiro
penetrante pelo ar.
— Eu me rendo — gritou o estranho, embora estivesse
dominando Jaffers e logo pôs-se de pé, arfando, uma figura
surpreendente, sem cabeça e sem mãos — pois tirara também a
luva da mão direita. — Não adianta — falou, como se tivesse
dificuldade em respirar.
Era a coisa mais fantástica do mundo, ouvir aquela voz
que parecia sair de um espaço vazio, mas os aldeões de Sussex
talvez sejam as pessoas mais prosaicas sob o sol. Jaffers também se
levantou e exibiu um par de algemas. E teve um sobressalto.
— E agora? — disse, desconcertado por uma obscura
percepção do absurdo daquela situação. Que diabo! Não vejo como
usá-las.
O estranho correu o braço de cima para baixo do paletó
e, como por milagre, os botões para os quais apontava a manga
vazia, desabotoaram-se. Depois disse alguma coisa sobre tornozelos
e inclinou-se. Parecia estar mexendo nos sapatos e meias.
— Vejam! — disse Huxter, de repente. — Isso não é um
homem. São apenas roupas vazias. Olhem! Pode-se enxergar gola
abaixo e até o forro das roupas dele. Poderia enfiar o braço.
Estendeu a mão; esta pareceu encontrar um obstáculo a
meio caminho e retirou-a com uma exclamação surda. — Gostaria
que tirasse os dedos de meu olho — disse a voz fantasmagórica, em
um tom de veemente protesto. — Na verdade, estou todo aqui;
cabeça, mãos, pernas e o resto, mas acontece que sou invisível. É
muito inconveniente, mas sou. Isso não é razão para que seja
apalpado até ficar em pedaços por cada campônio idiota de Iping.
As roupas, todas desabotoadas e pendendo frouxamente
de suportes invisíveis, levantaram-se, as mangas nos quadris.
Vários outros homens tinham entrado na sala que estava
ficando superlotada. — Invisível, hein? — duvidou Huxter,
ignorando o insulto do estranho. — Onde já se viu isso?
— Talvez seja fora do comum, mas não é crime. Por que
fui agredido dessa forma por um policial?
— Ah! Isso é diferente — respondeu Jaffers. — Sem
dúvida o senhor é um tanto difícil de ver nesta luz, mas tenho um
mandado e tudo legal. Não estou atrás de invisibilidade: é de um
roubo. Arrombaram uma casa e tiraram dinheiro.
— E daí?
— As circunstâncias realmente indicam...
— Tolice e estupidez — replicou o Homem Invisível.
— Espero que sim, senhor; mas tenho minhas ordens.
— Está bem — concordou o estranho. — Eu vou. Eu
vou. Mas sem algemas.
— São de praxe.
— Sem algemas — exigiu o estranho.
— Perdoe-me — disse Jaffers.
O vulto sentou-se bruscamente e antes que alguém
pudesse entender o que fazia, os sapatos meias e calças tinham sido
jogados para baixo da mesa. Então levantou-se de um salto e
retirou o paletó.
— Ei, pare com isso — protestou Jaffers,
compreendendo de repente o que estava acontecendo. Agarrou o
colete; este lutou e a camisa escorregou para fora dele e deixou-o
mole e vazio em suas mãos. — Segurem-no — gritou Jaffers. —
Quando ele tirar o resto. . .!
— Segurem-no — gritaram todos e houve um avanço
geral para a camisa em movimento que era tudo quanto se podia
ver do estranho.
A manga da camisa plantou um sopapo traiçoeiro na cara
de Hall, que procurava impedir seu avanço de braços abertos e
precipitou-o de costas sobre o velho Toothsome, o sacristão e, no
momento seguinte a camisa foi erguida e ficou sacudindo as
mangas, enrugada e vazia, como uma camisa que está sendo tirada
pela cabeça. Jaffers agarrou-a, o que apenas ajudou a retirada; levou
um golpe na boca, vindo do ar e, incontinenti, puxou o cassetete e
atingiu violentamente o alto da cabeça de Teddy Henfrey.
— Cuidado! — berravam todos, esgrimindo ao acaso e
batendo no nada. — Segurem-no! Fechem a porta! Não o deixem
solto! Peguei alguma coisa! Aqui está ele! Criou-se uma completa
confusão de vozes. Ao que parecia, todos estavam apanhando ao
mesmo tempo e Sandy Wadgers, esperto como sempre e alertado
por um terrível golpe no nariz, reabriu a porta e liderou a turba. Os
outros que o seguiram imediatamente ficaram, por instantes,
espremidos em um canto junto à porta. A pancadaria continuava.
Phipps, o unitário, teve um dente da frente quebrado e
machucaram a cartilagem do ouvido de Henfrey. Jaffers levou um
soco no maxilar e, voltando-se, atingiu algo que estava entre ele e
Huxter no tumulto e impedia que se aproximassem. Sentiu um
peito musculoso e, em seguida, a multidão de homens que se
debatiam, excitados, precipitou-se no vestíbulo repleto.
— Apanhei-o! — gritou Jaffers engasgando e rodopiando
entre eles, lutando, com o rosto vermelho de veias inchadas, contra
um inimigo que não via.
Os homens tropeçavam, à direita e esquerda, enquanto
aquela luta extraordinária progredia aos solavancos e rapidamente
em direção à porta da casa e rolava meia dúzia de degraus da
estalagem. Jaffers gritou, com voz estrangulada — e mesmo assim
segurando com força e usando o joelho — rodou sobre si mesmo e
caiu pesadamente de costas, a cabeça no cascalho. Só então seus
dedos relaxaram.
Houve gritos excitados de "Segurem-no!" "Invisível!" e
outros mais e um jovem, desconhecido no lugar, e cujo nome não
se soube, correu, segurou alguma coisa, perdeu a pega e caiu sobre
o corpo do policial prostrado. Na estrada, a meio caminho, uma
mulher gritou quando alguma coisa a empurrou; um cão, que
parecia ter sido chutado, gemeu, e correu ganindo até o pátio de
Huxter, e foi assim a saída do Homem Invisível. Por algum tempo,
todos ficaram pasmos e gesticulantes e então chegou o Pânico e
dispersou-os pela aldeia, como um pé de vento espalha folhas
mortas.
Mas Jaffers continuava imóvel, com o rosto voltado para
cima e os joelhos dobrados.
8
EM TRÂNSITO
O oitavo capítulo é extremamente breve e conta que
Gibbins, o naturalista amador do distrito, deitado no espaço aberto
das colinas, sem uma única alma a menos de um par de milhas de
distância, segundo imaginava, e quase adormecido, ouvira, bem
próximo, o som de um homem tossindo, espirrando e blasfemando
selvagemente entredentes; e que, olhando, não vira nada.
Entretanto, a voz era real. E continuava a blasfemar com a fluência
e variedade que caracterizam as blasfêmias de um homem culto.
Atingira um ápice, diminuíra novamente e fora tornando-se
inaudível com a distância, indo, ao que parecia, em direção a
Adderdean. Erguera-se mais uma vez em um espirro espasmódico e
sumira. Gibbins ignorava completamente as ocorrências da manhã,
mas o fenômeno fora tão estranho e perturbador que sua
tranqüilidade filosófica desaparecera; levantara-se precipitadamente
e apressara-se a descer a colina íngreme, tão rápido quanto possível,
em direção à vila.
9
O SR. THOMAS MARVEL
Pode-se descrever o sr. Thomas Marvel como uma
pessoa de rosto abundante e flexível, com um nariz que era uma
protuberância cilíndrica, a boca afeita à bebida, ampla e flutuante, e
uma barba espetada e excêntrica. O corpo tinha propensão à
gordura e os membros curtos só faziam acentuar essa propensão.
Usava um chapéu sedoso e felpudo e a freqüente substituição de
botões e cordões de sapato por barbante, visível em pontos críticos
de sua roupa, caracterizavam-no como um homem essencialmente
solteiro.
O sr. Thomas Marvel estava sentado com os pés em uma
vala à beira da estrada que corta a colina, em direção a Adderdean,
mais ou menos a uma milha e meia de Iping. Exceto pelas meias
que ostentavam uma trama rendada irregular, tinha os pés nus e
seus dedões eram largos e espetados como as orelhas de um cão de
guarda. Preguiçosamente — fazia tudo preguiçosamente —
contemplava a possibilidade de experimentar um par de botas.
Eram as botas mais fortes que já encontrara havia muito tempo,
mas grandes demais para ele; ao passo que as que usava calçavamno
muito confortavelmente em tempo seco, mas eram de sola
demasiado fina para a umidade. O sr. Thomas Marvel odiava botas
folgadas, mas odiava igualmente a umidade. Nunca tinha pensado
sobre qual delas odiava mais, porém o dia estava agradável e não
havia nada melhor a fazer. Portanto, dispôs as quatro botas em um
grupo gracioso no gramado e contemplou-as. Mas ao vê-las ali
entre a grama e as flores amarelas que a salpicavam, ocorreu-lhe, de
repente, que ambos os pares constituíam uma visão extremamente
feia. Não se assustou nem um pouco com a voz atrás dele.
— De qualquer maneira, são botas — disse a voz.
— São botas dadas por caridade — disse o sr. Thomas
Marvel, com a cabeça inclinada para um lado, contemplando-as
com repugnância; — e quero ir para o inferno se souber qual delas
faz o par mais horrendo de todo este bendito mundo!
— Hum... — falou a voz.
— Já usei piores — na verdade fiquei até sem usar
nenhuma. Mas não usar nenhuma é tão escandalosamente feio, se
me permite a expressão, que tenho andado mendigando — botas
em especial — há dias. Porque estava farto delas. Claro, são
bastante sólidas. Mas um cavalheiro em suas andanças vê muito as
próprias botas. E, acredite o senhor ou não, por mais que tentasse,
não consegui nada nesse bendito condado além DELAS. Olhe para
elas! E este é, de um modo geral, um bom condado para botas. Mas
a minha sorte é que varia. Há dez anos ou mais que arranjo botas
neste lugar. E agora tratam-me assim.
— É um lugar horrível — disse a voz. — E as pessoas
são uns porcos.
— É mesmo! — concordou o sr. Thomas Marvel. —
Deus! Mas essas botas! São demais.
Voltou a cabeça para a direita para olhar as botas de seu
interlocutor, com a intenção de compará-las e eis que, onde
deveriam estar as botas dele, não havia pernas nem botas. Voltou a
cabeça por cima do ombro esquerdo e ali também não havia pernas
nem botas. Foi invadido pelo clarão de um grande espanto.
— Onde está você? — perguntou o sr. Thomas Marvel
por sobre o ombro, virando-se de quatro. Viu apenas uma extensão
de colinas desoladas sob o balanço do vento e moitas distantes de
tojo de pontas verdes.
— Estarei bêbado? — perguntou-se o sr. Marvel. —
Terei tido visões? Estaria falando sozinho? Que...
— Não se assuste — disse uma voz.
— Nada de ventriloquismo comigo — disse o sr. Marvel
pondo-se de pé. Onde está você? Assustado, eu!
— Não se assuste — repetiu a voz.
— Você é que vai ficar assustado daqui a um minuto, seu
idiota — ameaçou o sr. Thomas Marvel. — Onde está? Espere até
que o pegue.
— Está enterrado? — insistiu o sr. Thomas Marvel, após
um intervalo.
Não houve resposta. O sr. Thomas Marvel de pé, sem
botas e assombrado, quase tirando o casaco.
— Piu piu — disse um pássaro, muito ao longe.
— Ora essa, piu piu! — protestou o sr. Thomas Marvel.
— Não é hora de brincadeiras. — A colina estava deserta, a leste,
oeste, norte e sul; a estrada, com suas valetas rasas balizadas de
branco, seguia inalterada e vazia, para o norte e para o sul e, a não
ser pelo pássaro, o céu azul também estava vazio. — Deus que me
ajude — disse o sr. Thomas Marvel, puxando novamente o casaco
para os ombros. — É a bebida! Eu já devia saber.
— Não é a bebida — falou a voz. — Controle seus
nervos.
— Ui! — gemeu o sr. Marvel e seu rosto ficou lívido nos
espaços entre as manchas. — É a bebida — repetiram seus lábios
silenciosamente. Continuou a olhar em volta, oscilando lentamente
para trás. — Podia jurar que ouvi uma voz — sussurrou.
— Claro que ouviu.
— Lá está ela outra vez — disse o sr. Marvel fechando os
olhos e pondo a mão na testa, em um gesto trágico. Subitamente
foi agarrado pelo colarinho e sacudido com força, ficando mais
tonto do que nunca. — Não seja estúpido — censurou a voz.
— Eu. . . estou. . . perdendo. . . a. . . maldita. . . cabeça —
lamentou-se o sr. Marvel. — Não adianta. Foi por me irritar tanto
por causa daquelas botas excomungadas. Estou perdendo minha
bendita cabeça. Ou são os espíritos.
— Nem uma coisa nem outra — disse a voz. — Escute!
— A cabeça — queixou-se o sr. Marvel.
— Um minuto — disse a voz em tom penetrante,
trêmula com o esforço de controlar-se.
— Bem? — perguntou o sr. Thomas Marvel, com a
estranha sensação de ter sido espetado com força por um dedo no
peito.
— Você acha que sou apenas imaginação? Apenas
imaginação?
— Que outra coisa pode ser? — indagou o sr. Thomas
Marvel, esfregando a nuca.
— Muito bem — disse a voz, em tom de alívio. — Pois
então vou lhe jogar pedras até que pense diferente.
— Mas onde está você?
A voz não respondeu. Uma pedra voou, sibilando,
aparentemente vinda do ar e não atingiu o sr. Marvel por um fio.
Este, voltando-se, viu outra pedra levantar-se, traçar uma trajetória
complicada, deter-se um momento e depois precipitar-se a seus pés,
com uma rapidez quase impossível de acompanhar com os olhos.
Estava admirado demais para esquivar-se. E a pedra veio, assoviando
e ricocheteou de um dedo nu para a vala. O sr. Thomas
Marvel pulou meio metro e berrou alto. Depois começou a correr,
tropeçou em um obstáculo oculto e desabou completamente,
caindo sentado.
— Agora — disse a voz, enquanto uma terceira pedra
curvou-se para o alto e ficou suspensa no ar, sobre o vagabundo.
— Sou imaginário?
Como resposta, o sr. Marvel lutou para pôr-se de pé e foi
imediatamente derrubado outra vez. Por um momento, deixou-se
ficar, caído e quieto. — Se você resistir mais — falou a voz —,
jogo a pedra em sua cabeça.
— Essa é boa — replicou o sr. Thomas Marvel sentandose,
pegando o artelho ferido com a mão e fixando o olhar no
terceiro míssil. — Não entendo nada. Pedras se atirando. Pedras
falando. Ponha-se no chão. Apodreça. Eu desisto.
A terceira pedra caiu.
— É muito simples — disse a voz. — Sou um homem
invisível.
— Diga alguma coisa que eu não saiba — protestou o sr.
Marvel, ofegando de dor. — Onde se escondeu, como consegue
isso. .. Eu é que não sei. Estou perdido.
— É só — disse a voz. — Sou invisível. É o que quero
que entenda.
— Qualquer um pode ver isso. Não precisa ficar tão
danado, moço. Falando sério. Dê uma pista. Como está escondido?
— Sou invisível. É o que importa. E o que quero que
compreenda é isso...
— Mas onde? — interrompeu o sr. Marvel.
— Aqui. A cinco metros de você.
— Ora, vamos! Não sou cego. Daqui a pouco vai me
dizer que é apenas ar. Não sou um desses vagabundos ignorantes.
— Sim, sou... transparente como o ar. Você está olhando
através de mim.
— Quê! Não tem nenhum recheio? Vox et. . . como é
mesmo? Falação. É assim?
— Sou apenas um ser humano: sólido, precisando de
comida e bebida, precisando de roupa também. . . Mas sou
invisível. Entende? Invisível. A idéia é simples. Invisível.
— Quê, mas de verdade?
— Sim, de verdade.
— Se é real, deixe pôr a mão em você — disse Marvel.
— Não será tão esquisito assim, pois. .. Deus! — exclamou —,
como me apavorou! Segurando-me com toda essa força!
Tocou com os dedos a mão que se havia fechado em
torno de seu pulso, e continuou a tatear timidamente braço acima,
espalmou a mão em um peito musculoso e explorou faces
barbadas. O rosto de Marvel era a imagem do pasmo.
— Estou mal! — balbuciou. — Isso é mais excitante do
que qualquer briga de galos! Extraordinário! E estou vendo agora
mesmo um coelho através de você, a um meio quilômetro! E nada
em você é visível. .. exceto.. . Examinou atentamente o espaço
aparentemente vazio. — Você não andou comendo pão com
queijo? — perguntou, segurando o braço invisível.
__ Tem toda a razão e ainda não foi totalmente
assimilado.
— Ah! — congratulou-se o sr. Marvel. — Mas não deixa
de ser meio fantástico.
— Naturalmente, isso não é tão maravilhoso quanto
pensa.
— É suficientemente maravilhoso para minhas modestas
necessidades — disse o sr. Thomas Marvel. — Como consegue?
Que diabo, como é feito?
— É uma longa história. E, além disso...
— Estou lhe dizendo que todo esse negócio quase me
derrubou — insistiu o sr. Marvel.
— O que quero dizer, no momento, é o seguinte: preciso
de ajuda. Cheguei a um ponto. .. Vi você de repente. Estava
andando a esmo, louco de raiva, nu e sem recursos. Poderia matar.
E vi você...
— Deus! — invocou o sr. Marvel.
— Vim por trás de você. . . hesitei, continuei.. . A
expressão do sr. Marvel era eloqüente.
— . . .e depois parei. "Ali está", disse a mim mesmo, "um
pária como eu. Esse é o homem de que preciso". Portanto, dei
meia-volta e aproximei-me de você... de você. E...
— Deus! — repetiu o sr. Marvel. — Mas estou
completamente confuso. Posso perguntar. .. Como se sente? E de
que pode precisar, em matéria de ajuda? Invisível!
— Quero que me ajude a arranjar roupas e abrigo e
depois, outras coisas. Há tempo demais que as deixei. E se não o
fizer. . . bem! Mas fará. Tem que fazer.
— Olhe aqui! — disse o sr. Marvel. — Estou abismado.
Não me bata mais. E deixe que vá embora. Tenho que me acalmar
um pouco. E você quase quebrou meu dedo do pé. É tudo tão sem
lógica. Colinas desertas, céu deserto. Nada à vista por muitos
quilômetros, a não ser o seio da Natureza. E então vem uma voz.
Uma voz vinda do céu! E pedras! E um punho. . . Deus!
— Controle-se — disse a voz —, porque tem que
cumprir a tarefa que escolhi para você.
O sr. Marvel esvaziou as bochechas e seus olhos ficaram
redondos.
— Eu o escolhi — reafirmou a voz. — Você é o único
homem, tirando alguns daqueles idiotas lá embaixo, que sabe que
existe um homem invisível. Tem que ser meu ajudante. Ajude-me e
farei grandes coisas por você. Um homem invisível é um homem
que tem poder. — Deteve-se um instante para espirrar
violentamente.
— Mas, se me trair — continuou —, se deixar de fazer o
que mandar. ..
Fez uma pausa e bateu com força no ombro do sr.
Marvel. Ao sentir o toque, o sr. Marvel deu um guincho de terror.
— Não quero trair você — afirmou, procurando afastar-se do
alcance dos dedos. — Pense o que quiser, mas nem pense nisso. Só
quero ajudar você, é só dizer o que tenho que fazer. (Deus!) Seja o
que for, farei com a maior boa vontade.
10
A VISITA DO SR. MARVEL A IPING
Depois que a primeira onda de pânico esmoreceu, Iping
começou a questionar. O ceticismo subitamente expôs sua cabeça
— um ceticismo um tanto nervoso, sem a menor confiança em sua
retaguarda mas, ainda assim, ceticismo. Era muito mais fácil não
acreditar em um homem invisível; e aqueles que o haviam
efetivamente visto dissolver-se no ar, ou sentido a força de seu
braço, podiam ser contados pelos dedos das mãos. E, entre essas
testemunhas, o sr, Wadgers estava ausente, tendo-se isolado
inacessivelmente por trás dos trincos e trancas da própria casa e
Jaffers continuava a jazer, atordoado, no salão da "Coach and
Horses". Idéias grandiosas e estranhas que, muitas vezes,
transcendem à experiência, afetam menos a homens e mulheres do
que considerações menores, porém mais tangíveis. Iping tinha um
aspecto alegre, cheia de bandeiras e todos vestiam roupas de gala. A
primeira segunda-feira após o domingo da Páscoa tinha sido
ansiosamente esperada por mais de um mês. Ao chegar a tarde,
mesmo os que acreditavam no Invisível estavam começando a
reassumir seus divertimentos simples, ainda meio hesitantes, na
suposição de que, de fato, se fora; e, para os descrentes, ele já se
tornara um gracejo. Porém as pessoas, fossem elas céticas ou
crentes, mostravam-se extremamente sociáveis durante todo aquele
dia.
Uma tenda dava à alameda de Haysman uma aparência
festiva e nela a sra. Bunting e outras senhoras estavam fazendo chá
enquanto, do lado de fora, as crianças da escola paroquial
apostavam corridas e faziam brincadeiras, sob a barulhenta tutela
do pastor e das senhoritas Cuss e Sackbut. Sem dúvida, pairava
ainda um leve mal-estar, mas a maioria dos presentes dava provas
de bom senso suficiente para ocultar qualquer receio que
experimentassem em suas imaginações. No gramado da aldeia,
grandemente apreciada pelos adolescentes, havia uma corda
inclinada, pela qual se podia descer agarrado a uma roldana movida
por uma manivela, que podia atirar qualquer um violentamente
contra o saco que ficava na outra extremidade. Havia balanços,
arremesso aos cocos e passeios, e o órgão de foles, amarrado aos
balanços, enchia o ar com um cheiro penetrante de óleo e música
igualmente penetrante. Os membros do clube, que tinham ido à
igreja de manhã, estavam esplêndidos com seus emblemas rosa e
verde e alguns dos mais animados tinham enfeitado também os
chapéus com tiras de cores brilhantes. O velho Fletcher, cujas
idéias sobre festas eram severas, podia ser visto à sua janela através
dos jasmineiros, ou pela porta aberta (onde quer que se preferisse
olhar) equilibrando-se precariamente sobre uma prancha apoiada
em duas cadeiras, caiando o teto da sala da frente.
Por volta das quatro horas, um estranho chegou à aldeia,
vindo das colinas. Era um sujeito baixo, gordo, usava um chapéu
alto incrivelmente sujo e parecia estar quase sem fôlego. Suas
bochechas eram alternadamente flácidas ou estofadas ao máximo.
O rosto avermelhado parecia apreensivo e movia-se com uma
espécie de vivacidade relutante. Dobrou a esquina junto à igreja e
tomou o caminho da "Coach and Horses". O velho Fletcher, entre
outros, lembrava-se de tê-lo visto e, na verdade, o velho senhor
ficou tão perturbado com aquela agitação estranha que, sem querer,
deixou que uma quantidade de cal escorresse pela broxa e
penetrasse na manga do casaco enquanto olhava para ele.
Esse estranho, no entender do proprietário do jogo de
cocos, parecia estar falando sozinho e o sr. Huxter observou a
mesma coisa. Parou ao pé dos degraus da "Coach and Horses" e,
segundo o sr. Huxter, pareceu travar uma violenta luta interior,
antes de convencer-se a entrar na casa. Subiu finalmente os degraus
e o sr. Huxter viu-o tomar à esquerda e abrir a porta da sala. Vozes
de dentro da sala e do bar advertiram o homem do erro que ia
cometendo. — Essa sala é particular! — disse Hall e o estranho
fechou desajeitadamente a porta e foi para o bar.
Em poucos minutos reapareceu, enxugando os lábios
com as costas da mão e um ar de tranqüila satisfação que, de
alguma forma, deu ao sr. Huxter a impressão de ser falsa. Por uns
poucos instantes ficou parado, olhando os arredores e depois o sr.
Huxter viu-o andar de um modo estranhamente furtivo em direção
aos portões do pátio, sobre o qual se abria a janela da sala. Após
alguma hesitação, o estranho encostou-se em um dos marcos do
portão, tirou do bolso um cachimbo curto de argila e preparou-se
para enchê-lo. Seus dedos tremiam. Acendeu-o, canhestro, e pôs-se
a fumar com uma atitude displicente, que os rápidos olhares que
lançava ao pátio desmentiam inteiramente.
O sr. Huxter viu tudo isso por cima das latas de fumo da
vitrine e o comportamento singular do homem levou-o a manter
sua observação.
Um pouco mais tarde o estranho endireitou bruscamente
o corpo e pôs o cachimbo no bolso. Depois desapareceu no pátio.
Sem hesitar, imaginando que estava sendo testemunha de algum
furto, o sr. Huxter contornou o balcão e correu para a rua, a fim de
interceptar o ladrão. Ao fazê-lo, viu que o sr. Marvel reaparecia, o
chapéu torto, uma trouxa grande de xadrez azul em uma das mãos
e na outra três livros, amarrados com o que se soube mais tarde
serem os suspensórios do vigário. Quando viu Huxter, ofegou, e
voltando-se rapidamente para a esquerda, começou a correr.
— Pega ladrão! — gritou Huxter e começou a perseguilo.
As sensações do sr. Huxter foram nítidas, porém de curta
duração. Avistou o homem um pouco à frente dele, acelerando os
passos na direção da esquina da igreja e da estrada da colina. Viu as
bandeirolas da aldeia e um ou dois rostos voltados para ele. Berrou
de novo — Pega! — Mal tinha dado umas dez passadas quando
sentiu a canela presa de alguma forma misteriosa e já não estava
correndo, mas voando pelos ares com uma rapidez incrível.
Percebeu que, de repente, o chão se aproximava de seu rosto. O
mundo pareceu fragmentar-se em um milhão de partículas
rodopiantes de luz e os acontecimentos subseqüentes deixaram de
interessá-lo.
11
NA "COACH AND HORSES"
Bem, mas para compreender com clareza o que tinha
acontecido na estalagem, é necessário voltar ao momento em que o
sr. Marvel foi visto da janela do sr. Huxter, pela primeira vez.
Naquele exato momento, o sr. Cuss e o sr. Bunting achavam-se na
sala. Com a maior seriedade, investigavam as bizarras ocorrências
da manhã e estavam, com a permissão do sr. Hall, fazendo um
exame minucioso dos pertences do Homem Invisível. Jaffers,
parcialmente recuperado da queda que levara, tinha ido para casa
em companhia de seus solícitos amigos. As roupas espalhadas do
hóspede tinham sido guardadas pela sra. Hall e a sala fora
arrumada. E, sobre a mesa, junto à janela, onde o estranho
costumava trabalhar, Cuss descobriu, quase instantaneamente, os
três livros grossos, manuscritos, intitulados "Diário".
— Um diário! — exclamou Cuss, enfileirando os três
livros sobre a mesa. — Agora, ao menos, vamos saber de alguma
coisa. — O pastor estava de pé, com as mãos em cima da mesa.
— Um diário — repetiu Cuss, sentando-se, ajeitando dois
volumes para apoiar o terceiro e abrindo-o. — Hum. . . Não há
nome na primeira página. Que transtorno! É um código. E há
números.
O vigário aproximou-se para olhar por cima do ombro
dele. Cuss virou as páginas, o rosto subitamente desapontado. —
Eu. . . Deus! Está tudo em código, Bunting.
— Não há diagramas? — perguntou o sr. Bunting. —
Nenhuma ilustração que esclareça. ..
— Veja você mesmo — disse o sr. Cuss. — Parte é
matemática, parte em russo ou alguma língua semelhante (a julgar
pelos caracteres), e parte em grego. Quanto ao grego, pensei que
você. . .
— Claro — disse o sr. Bunting, tirando e limpando os
óculos e sentindo-se subitamente muito pouco à vontade — pois o
que restava de grego em sua cabeça nem valia a pena mencionar; —
sim, o grego, naturalmente, pode dar uma pista.
— Vou arranjar um lugar para você.
— Preferia folhear os volumes primeiro — disse o sr.
Bunting, ainda limpando os óculos. — Antes de mais nada', uma
impressão geral, Cuss, e depois, compreende, podemos procurar
pistas.
Tossiu, pôs os óculos, ajustou-os cuidadosamente, tossiu
de novo e desejou que acontecesse alguma coisa para impedir o que
poderia ser uma desmoralização inevitável. E então, alguma coisa
realmente aconteceu.
A porta abriu-se de repente.
Os dois cavalheiros sobressaltaram-se violentamente,
olharam e tiveram o alívio de ver um rosto, de um rosado desigual,
sob o chapéu de seda felpuda. — Cerveja? — perguntou o rosto e
ficou imóvel, olhando-os fixamente.
— Não — disseram os dois cavalheiros ao mesmo
tempo.
— Do outro lado, homem — acrescentou o sr. Bunting.
— Por favor, feche a porta — recomendou o sr. Cuss,
em tom irritado.
— Certo — disse o intruso, em uma voz que parecia
baixa, curiosamente diferente do espalhafato da primeira indagação.
— Têm razão — continuou o estranho no tom inicial. — Atenção,
afastar-se! — e desapareceu, fechando a porta.
.— Um marinheiro, imagino — comentou o sr. Bunting.
— São uns sujeitos divertidos. Ora, "Atenção, afastar-se!" Um
termo náutico, referindo-se ao fato de ter-se retirado da sala,
suponho.
— Acredito que sim — concordou Cuss. — Meus nervos
estão descontrolados hoje. A porta se abrindo assim. . . Realmente
fez-me pular.
O sr. Bunting sorriu, como se ele próprio não tivesse
pulado também. — E agora — disse, com um suspiro — vamos
aos livros.
— Um minuto — pediu Cuss e foi fechar a porta. —
Assim acho que estamos a salvo de interrupções.
Alguém espirrou, quando ele disse isso.
— Uma coisa é incontestável — falou Bunting, puxando
uma cadeira para junto da de Cuss. — De fato, nestes últimos dias,
aconteceram coisas muito estranhas. Naturalmente, não posso
acreditar nessa história absurda de invisibilidade.. .
— É inacreditável — concordou Cuss —, inacreditável.
Mas permanece o fato de que vi.. . na verdade vi a manga vazia até
embaixo.
— Mas você viu... tem certeza? Suponhamos que havia
um espelho, por exemplo... É tão fácil criar alucinações. Não sei se
já viu um ilusionista realmente bom...
— Não vou discutir de novo — objetou Cuss. — Já
debatemos isso exaustivamente, Bunting. E, no momento, há esses
livros Ah! Aqui está algo que acho que é grego! Os caracteres
decerto são gregos.
Apontou para o meio da página. O sr. Bunting corou de
leve e aproximou o rosto, parecendo estar em dificuldades com os
óculos. De repente, apercebeu-se de uma sensação esquisita em sua
nuca. Tentou levantar a cabeça mas encontrou uma dificuldade
irremovível. A impressão era de que havia uma força inexplicável,
como a de uma mão pesada e firme que baixava seu queixo,
irresistivelmente, para a mesa. "Não se mexam, homenzinhos",
sussurrou uma voz, "ou estouro os miolos dos dois!" Olhou para o
rosto de Cuss, bem junto ao dele e cada um viu no outro um
horrível reflexo do próprio pasmo acovardado.
— Lamento ter que ser brutal com os senhores — disse a
Voz — mas é inevitável. Desde quando aprenderam a violar as
anotações particulares de um pesquisador? — insistiu a Voz; e os
dois queixos bateram na mesa ao mesmo tempo e duas dentaduras
rangeram.
— Desde quando aprenderam a invadir os aposentos
particulares de um homem em apuros? — e o choque foi repetido.
— E onde puseram minhas roupas?
— Ouçam — falou a Voz. — As janelas estão trancadas
e tirei a chave da porta. Sou um homem bastante forte e estou com
o atiçador à mão, além de ser invisível. Não há a mínima dúvida de
que posso matar os dois e sair com toda a facilidade, se quiser,
compreendem? Muito bem. Se soltá-los, prometem não tentar
nenhuma tolice e fazer o que lhes mandar?
O pastor e o médico entreolharam-se e a expressão deste
mudou. — Sim — concordou o sr. Bunting e o médico repetiu o
mesmo. Então a pressão em seus pescoços relaxou e o médico e o
pároco esticaram-se, ambos muito vermelhos e contorcendo as
cabeças.
— Por favor, mantenham-se sentados no mesmo lugar
— disse o Homem Invisível. — Aqui está o atiçador, como vêem.
— Quando entrei nesta sala — prosseguiu o Homem
Invisível, depois de tocar com o atiçador a ponta do nariz de cada
um de seus visitantes —, não esperava encontrá-la ocupada e
queria, além de meus livros de anotações, uma muda de roupa.
Onde está? Não, não se levantem. Já vi que não está aqui. Nesse
exato momento, embora os dias sejam bastante quentes para que
um homem invisível passa andar por aí pelado, as noites são frias.
Quero roupas. . . e mais algumas coisas; e também preciso desses
três livros.
12
O HOMEM INVISÍVEL PERDE A PACIÊNCIA
Neste ponto, torna-se impossível deixar de interromper
outra vez a narrativa, por uma certa razão muito penosa que não
tardará a se tornar evidente. Enquanto os fatos anteriores
aconteciam na sala e enquanto o sr. Huxter estava observando o sr.
Marvel que fumava o cachimbo encostado ao portão, o sr. Hall e
Teddy Henfrey, a menos de uma dúzia de metros de distância,
discutiam, em um estado de nebulosa confusão, o tópico corrente
em Iping.
Subitamente ouviu-se uma pancada violenta contra a
porta da sala, um grito agudo e depois, silêncio.
— Opa! — exclamou Teddy Henfrey.
— Opa! — repetiram do bar.
O sr. Hall compreendia as coisas lentamente, mas com
segurança. — Isso não está certo — disse, e saiu detrás do bar
encaminhando-se para a porta da sala.
Ele e Teddy aproximaram-se da porta ao mesmo tempo,
com uma expressão decidida e olhos atentos. — Alguma coisa está
errada — disse Hall, e Henfrey acenou, concordando. Baforadas de
um desagradável odor químico vieram ao encontro deles e ouviram
o som abafado de uma conversa muito rápida, em voz baixa.
— Tudo bem aí? — perguntou Hall, batendo.
A conversa murmurada cessou bruscamente, houve um
momento de silêncio e depois continuou em sussurros sibilantes
seguidos de um grito agudo, protestando "Não! Não, não faça
isso!" Ouviu-se um movimento súbito, o ruído de uma cadeira
virada e de uma breve luta. E fez-se silêncio, novamente.
— Que diabo? — exclamou Henfrey, sotto você.
— Tudo bem aí? — perguntou outra vez o sr. Hall
rispidamente.
A voz do vigário respondeu, com uma entonação
curiosamente entrecortada: — Muito bem. Por favor, não
interrompam.
— Esquisito! — disse o sr. Henfrey.
— Esquisito! — ecoou o sr. Hall.
— Diz para não interromper — falou Henfrey.
— Eu ouvi — concordou Hall.
— E um espirro — acrescentou Henfrey.
Ficaram à escuta. A conversa era rápida e surda. — Não
posso! — protestou o sr. Bunting, elevando a voz. — Estou lhe
dizendo, senhor, não o farei.
— Que foi isso? — indagou Henfrey.
— Disse que não ia fazer — respondeu Hall. — Não
estava falando conosco, estava?
— É uma vergonha — disse o sr. Bunting, na sala.
— "Uma vergonha" — repetiu o sr. Henfrey. — Ouvi
claramente.
— Quem está falando agora? — perguntou Henfrey.
— O sr. Cuss, suponho — respondeu Hall. — Está
ouvindo alguma coisa?
Silêncio. Os sons que vinham da sala eram indistintos e
enigmáticos.
— Parece que estão sacudindo a toalha da mesa.
A sra. Hall apareceu por trás do bar. Hall fez gestos para
que ficasse quieta e chamou-a.
Isso despertou o antagonismo feminino da sra. Hall. —
Por que está aí escutando, Hall? — perguntou. — Não tem mais
nada que fazer em um dia atarefado como este?
Hall tentou explicar tudo por caretas e mímica, mas a sra.
Hall obstinou-se. Ergueu a voz. Por isso, Hall e Henfrey, um tanto
passados, voltaram para o bar na ponta dos pés, gesticulando para
se fazerem entender.
A princípio, ela recusou-se a ver alguma coisa de anormal
no que tinham ouvido. Depois insistiu para que Hall ficasse calado,
enquanto Henfrey lhe contava sua história. Sentia-se inclinada a
considerar tudo aquilo uma bobagem — talvez estivessem apenas
arrastando os móveis. — Eu o ouvi dizer "É uma vergonha"; isso
eu ouvi — afirmou o sr. Hall.
— Também ouvi, sra. Hall — disse Henfrey.
— É possível. . . — começou a sra. Hall.
— Psiu! — disse o sr. Teddy Henfrey. — Será que foi a
janela?
— Que janela? — perguntou a sra. Hall.
— A janela da sala — respondeu Henfrey.
Todos se calaram, escutando atentamente. Os olhos da
sra. Hall fixos bem em frente viram, sem registrar, o retângulo claro
emoldurado pela porta da estalagem, a estrada branca e bem
delineada e a frente da loja de Huxter brilhando ao sol de junho. De
repente, a porta de Huxter abriu-se e este apareceu, os olhos cheios
de excitação, gesticulando com os braços. — Ali! — gritou — Pega
ladrão! — e passou obliquamente pela porta, correndo para o
portão do pátio e desaparecendo.
Simultaneamente ouviu-se um tumulto na sala e o som de
janelas que se fechavam.
Hall, Henfrey e todos os ocupantes humanos do bar
precipitaram-se para a rua, na maior confusão. Viram alguém
dobrar a esquina que dava para a estrada nas colinas, e o sr. Huxter
executando um complicado salto no ar e caindo de cara e de
ombros. Pela rua, as pessoas tinham se detido, pasmas, ou corriam
para ele.
O sr. Huxter estava atordoado. Henfrey ainda parou para
constatar tal fato, mas Hall e dois empregados do bar continuaram
sem hesitação até a esquina, gritando palavras incoerentes e viram o
sr. Marvel desaparecer ladeando o canto do muro da igreja. Ao que
parecia, tinham chegado à bizarra conclusão de que aquele era o
Homem Invisível tornado visível de repente e logo haviam decidido
persegui-lo, correndo pelo caminho. Mas Hall, que mal correra uns
doze metros, deu um berro de espanto e foi atirado para o lado,
voando de cabeça, agarrado a um dos empregados e derrubando-o
com ele. Fora atacado como se ataca um homem jogando futebol.
O segundo empregado aproximou-se, descrevendo um círculo,
olhou e, achando que Hall tinha caído sozinho, voltou-se para
continuar a perseguição; isso apenas para levar um calço na canela,
da mesma forma que Huxter fora calçado. Então, quando o
primeiro empregado procurava pôr-se de pé, foi atingido de lado
por um golpe que poderia abater um boi.
Quando caiu, os que vinham correndo da praça da aldeia
também dobraram a esquina. O primeiro a aparecer foi o
proprietário da barraca de tiro aos cocos, um homem atarracado,
vestindo uma camisa de malha azul, que ficou espantado ao ver os
três homens absurdamente estatelados no chão. E então, alguma
coisa aconteceu com o pé que ficara atrás em sua passada e caiu de
cabeça, rolando para o lado bem a tempo de atingir os pés de seu
irmão e sócio que o seguia de perto. Os dois homens foram
chutados, pisoteados, tropeçados e xingados por um número
considerável de pessoas superapressadas.
Quando Hall, Henfrey e os empregados precipitaram-se
para fora de casa, a sra. Hall, que havia aprendido com anos de
experiência, permaneceu no bar, junto à caixa. E a porta da sala
abriu-se repentinamente, o sr. Cuss apareceu e, sem olhar para ela,
desceu depressa os degraus e correu para a esquina. — Seguremno!
— gritou. — Não deixem que jogue o embrulho no chão! Só
podem vê-lo enquanto estiver carregando o embrulho. — Não
sabia da existência de Marvel, pois o Homem Invisível tinha
entregue os livros e o embrulho a este já no pátio. O sr. Cuss
parecia zangado e resoluto, mas sua roupa era insuficiente, uma
espécie de saiote bambo que só poderia ser admitido na Grécia. —
Segurem-no! — berrava. — Está com minhas calças! E toda a
roupa do pastor!
— Cuido dele daqui a pouco! — gritou para Henfrey ao
passar por Huxter que continuava caído, e voltando à esquina para
juntar-se ao tumulto, foi prontamente derrubado em uma queda
indecorosa. Alguém, em plena corrida, pisou com força em seus
dedos. Ele gemeu, lutou para ficar novamente de pé, foi derrubado
outra vez e atirado de quatro, quando tomou consciência de que
não estava tomando parte em uma captura, mas em uma
debandada. Todos estavam voltando à aldeia. Levantou-se de novo
e foi atingido com força atrás da orelha. Cambaleante, dirigiu-se de
volta à "Coach and Horses", pulando por cima do abandonado
Huxter que tinha conseguido sentar-se.
Quando já havia subido a metade dos degraus da
estalagem, ouviu, às suas costas, um repentino urro de raiva, que se
destacou nitidamente, em meio à confusão de gritos e uma sonora
bofetada no rosto de alguém. Reconheceu a voz como a do
Homem Invisível e o tom era o de um homem inopinadamente
enfurecido por um golpe doloroso.
No momento seguinte, o sr. Cuss estava de volta à sala.
— Ele vem vindo, Bunting! — exclamou, entrando. — Proteja-se!
Ele enlouqueceu!
O sr. Bunting estava junto à janela, ocupado em uma
tentativa de vestir-se com o tapete da lareira e um número da West
Surrey Gazette. — Quem está vindo? — perguntou, tão assustado
que sua roupagem escapou por pouco da desintegração.
— O Homem Invisível — respondeu Cuss e correu para
a janela. — É melhor sairmos daqui! Ele está louco de raiva! Louco!
No mesmo instante já estava de fora, no pátio.
— Deus do céu! — lamentou-se o sr. Bunting, hesitando
entre duas alternativas horríveis. Ouviu uma luta terrível no
corredor da estalagem e tomou uma decisão. Pulou a janela,
arrumou a roupa apressadamente e fugiu aldeia acima, tão depressa
quanto as pequenas pernas gordas lhe permitiam.
A partir do momento em que o Homem Invisível gritara
de raiva e o sr. Bunting executara a fuga memorável, tornou-se
impossível fazer um relato coerente dos acontecimentos em Iping.
Provavelmente, a intenção inicial do Homem Invisível tinha sido
apenas proteger a fuga de Marvel com as roupas e os livros. Mas
sua paciência, que já naquela ocasião não era muita, havia se
desintegrado completamente diante de um golpe casual e, daí por
diante, pôs-se a bater e derrubar, pelo mero prazer de ferir.
Imagine-se a rua, cheia de gente que corria, de portas que
batiam e de brigas por lugares seguros. Deve-se imaginar o tumulto
atingindo o equilíbrio precário da tábua do velho Fletcher e de suas
duas cadeiras, com resultados catastróficos. Deve-se imaginar um
casal desprevenido apanhado de surpresa em um turbilhão. E então
todo o tumulto passou e as ruas de Iping, com seus enfeites e
bandeiras, ficaram desertas, a não ser pelo Desconhecido ainda
furioso, e juncadas de cocos, telas de lona derrubadas e o estoque
completo de uma barraca de gulodices espalhado pelo chão. Por
toda parte, ouvia-se o som de janelas fechando-se e de trancas
sendo colocadas, e o único sinal visível de um ser humano era,
ocasionalmente, um olhar furtivo sob uma sobrancelha erguida, no
canto do painel de uma janela.
O Homem Invisível ainda se divertiu um pouco
quebrando todas as janelas da "Coach and Horses" e depois enfiou
uma lâmpada da rua pela janela da sala da sra. Gribble. Também
devia ter sido ele quem tinha cortado os fios do telégrafo para
Adderdean, um pouco além do chalé de Higgins, na estrada de
Adderdean. E, depois de tudo isso, como suas características
especiais lhe permitiam, ficou fora do alcance da percepção humana
e não foi mais visto, ouvido nem pressentido em Iping.
Desapareceu completamente.
Mas passaram-se quase duas horas antes que qualquer ser
humano se aventurasse a sair de novo para a desolação da Iping
Street.
13
O SR. MARVEL TENTA PEDIR
DEMISSÃO
Quando a noite começou a cair e Iping estava apenas
começando a olhar timidamente para fora contemplando os
destroços inúteis de seu feriado, um homem baixo e atarracado,
com um velho chapéu sedoso, caminhava penosamente no
crepúsculo pela estrada de Bramblehurst, por trás do renque de
faias. Levava três livros amarrados por uma espécie de tira elástica
estampada e uma trouxa embrulhada em uma toalha de mesa azul.
Seu rosto vermelho demonstrava medo e cansaço; parecia tomado
de uma pressa espasmódica. Acompanhava-o uma voz que não era
a sua e a todo momento estremecia ao toque de mãos invisíveis.
— Se você fugir outra vez — disse a Voz —, se tentar
fugir outra vez. ..
— Deus! — implorou o sr. Marvel. — Esse ombro já
está todo machucado.
— ... palavra de honra — continuou a Voz —, eu o
mato.
— Não tentei fugir — retrucou Marvel, com uma voz
que não estava muito longe das lágrimas — juro que não. Não vi a
maldita curva. Que diabo! Como ia saber que havia aquela maldita
curva? E assim mesmo levei tantos encontrões...
— E vai levar muitos mais se não prestar atenção —
ameaçou a Voz e o sr. Marvel calou-se bruscamente. Bufou, e em
seus olhos havia um eloqüente desespero.
— Já foi um desastre expor meu segredo a esses labregos
estúpidos, sem que você, ainda por cima, tentasse se mandar com
meus livros. Por sorte alguns desistiram e correram naquela hora!
Aqui estou eu.. . Ninguém sabia que era invisível! E agora, que vou
fazer?
— E eu, o que vou fazer? — perguntou o sr. Marvel,
baixinho.
— A história se espalhou. Vai sair nos jornais! Todos
procurarão por mim; todos estarão prevenidos... — A Voz
explodiu em xingamentos furiosos e depois calou-se.
A expressão de desespero do sr. Marvel acentuou-se e
arrastou os passos.
— Ande! — ordenou a Voz.
O rosto do sr. Marvel assumiu um tom acinzentado entre
as placas mais vermelhas.
— Não deixe esses livros caírem, idiota! — disse a Voz
rudemente, aproximando-se. — O fato é que vou ter que usar você.
É um instrumento inadequado, mas preciso dele.
— Sou um péssimo instrumento — disse o sr. Marvel.
— É mesmo — concordou a Voz.
— Sou o pior instrumento que poderia arranjar —
lamentou-se Marvel. — Não sou forte — acrescentou, após um
silêncio desanimador. — Não sou muito forte — repetiu.
— Não?
— E meu coração é fraco. Todo aquele negócio. . .
consegui, naturalmente, mas, por Deus, podia ter morrido.
— E daí?
— Não tenho coragem ou forças para o tipo de coisas
que quer.
— Eu o estimulo.
TA
— Prefiro que não. Sabe que não gostaria de estragar
seus planos. Mas poderia, por puro medo e aflição.
— Melhor que não — disse a Voz, em tom baixo e
ameaçador.
— Queria estar morto — lamuriou-se Marvel. — Não é
justo — prosseguiu. — Há de concordar. Acho que tenho todo o
direito .. .
— Vá andando! — ordenou a Voz.
O sr. Marvel apressou o passo e, durante algum tempo,
seguiram em silêncio.
— É duro como o diabo — falou novamente o sr.
Marvel. Isso não teve o menor efeito. Tentou outro argumento.
— Que ganho com isso? — começou de novo, em um
tom de quem se sentia insuportavelmente prejudicado.
— Oh! Cale-se! — exclamou a Voz com uma ênfase
repentina e surpreendente. — Pode estar certo de que cuidarei de
você. Faça o que mando. Faça tudo certo. É um idiota e o mais,
porém vai fazer. . .
— Estou lhe dizendo, senhor, não sou capaz.
Respeitosamente, mas essa é a verdade.
— Se não se calar, vou torcer seu pulso outra vez —
disse o Homem Invisível. — Quero pensar.
Depois de algum tempo, puderam ver entre as árvores
dois retângulos de luz amarela, e a torre quadrada de uma igreja
avultou no entardecer. — Ficarei com a mão em seu ombro de um
lado a outro da aldeia — disse a Voz. — Atravesse-a direto e não
tente nenhuma bobagem. Se tentar, será pior para você.
— Sei disso — suspirou o sr. Marvel. — Sei de tudo isso.
A criatura de aspecto infeliz, com um chapéu de seda fora
de moda, percorreu a rua da pequena aldeia de um lado a
outro e desapareceu na escuridão crescente, fora do alcance das
luzes das janelas.
14
EM PORT STOWE
Às dez horas da manhã seguinte, encontraram o sr.
Marvel sentado no banco do lado de fora de uma pequena
estalagem nos arredores de Port Stowe, barbado, sujo e
amarfanhado pela viagem, os livros a seu lado e as mãos enterradas
nos bolsos, parecendo muito cansado, nervoso e pouco à vontade,
e bufando a todo momento. Os livros junto a ele já estavam
amarrados com um barbante. A trouxa fora abandonada no bosque
de pinheiros depois de Bramblehurst, de acordo com uma mudança
nos planos do Homem Invisível. O sr. Marvel permanecia sentado
e, embora ninguém lhe prestasse a mínima atenção, sua inquietude
continuava febril. As mãos entravam e saíam sem cessar dos vários
bolsos em um tatear curiosamente agitado.
Quando já estava ali havia quase uma hora, um velho
marinheiro saiu da estalagem trazendo um jornal e sentou-se ao
lado dele, dizendo: — Que dia agradável!
O sr. Marvel relanceou para as cercanias e respondeu,
com algo muito semelhante ao terror. — Muito.
— Um tempo bem ameno para esta época do ano —
disse o marinheiro em um tom que não admitia contestação.
— É verdade — concordou o sr. Marvel.
O marinheiro sacou de um palito e (ocultando o olhar),
ocupou-se com ele durante alguns minutos. Enquanto isso, seus
olhos ficaram à vontade para examinar o aspecto empoeirado do sr.
Marvel e os livros ao lado dele. Quando se aproximara deste, tinha
um som como o tilintar de moedas postas em um bolso. O
contraste entre o aspecto do sr. Marvel e aquela sugestão de
opulência havia lhe despertado a curiosidade. Mas depois, seus
pensamentos voltaram-se novamente para um tópico que tinha se
apossado de sua imaginação.
— Livros? — perguntou de repente, terminando de
manejar o palito com um ruído considerável.
O sr. Marvel sobressaltou-se e olhou-se. — Ah, sim —
respondeu. — Sim, são livros.
— Há muitas coisas extraordinárias nos livros —
comentou o marinheiro.
— Acredito — assentiu o sr. Marvel.
— E muitas coisas extraordinárias fora dele — disse o
marinheiro.
— Isso também é verdade — concordou o sr. Marvel.
Olhou para seu interlocutor e depois relanceou em torno.
— Há algumas coisas extraordinárias nos jornais, por
exemplo — continuou o marinheiro.
— Há.
— Neste jornal — insistiu o marinheiro.
— Ah! — disse o sr. Marvel.
— Há uma história — disse o marinheiro, fixando o sr.
Marvel com um olhar firme e decidido — há uma história sobre
um Homem Invisível, por exemplo.
O sr. Marvel contorceu a boca, cocou o rosto e sentiu
que suas orelhas ardiam. — Que mais serão capazes de escrever
depois dessa? — perguntou com voz fraca. — Na Áustria ou na
América?
— Nada disso — respondeu o marinheiro. — Aqui!
— Deus! — exclamou o sr. Marvel, estremecendo.
— Quando digo aqui — prosseguiu o marinheiro para
enorme alívio do sr. Marvel — naturalmente não me refiro aqui, a
este lugar; quero dizer nos arredores.
— Um Homem Invisível! — falou o sr. Marvel. — E o
que andou fazendo?
— Tudo — respondeu o marinheiro, observando o sr.
Marvel e depois ampliando a notícia: — Todas as diabruras.
— Há quatro dias que não vejo um jornal — explicou
Marvel.
— Começou em Iping — disse o marinheiro.
— Verdade? — exclamou o sr. Marvel.
— Começou lá. E parece que ninguém sabe de onde
veio. Aqui está: "História Misteriosa em Iping". E o jornal diz que
as provas são extraordinariamente positivas. Extraordinariamente.
— Deus! — repetiu mais uma vez o sr. Marvel.
— Mas, afinal, é uma história extraordinária: as
testemunhas são um homem do clero e um cavalheiro médico —
viram-no decerto e muito bem — ou, isto é, não o viram. Diz aqui
que estava hospedado na "Coach and Horses", e que ninguém
percebeu o problema dele, é o que diz, não perceberam o problema
dele até que, em uma briga na estalagem, arrancaram as faixas da
cabeça dele. Então observaram que a cabeça dele era invisível.
Imediatamente fizeram tentativas para agarrar o homem, porém ele,
tirando a roupa, diz o jornal, conseguiu fugir, mas só depois de uma
luta desesperada, durante a qual feriu seriamente, diz aqui, nosso
digno e capaz policial, o sr. J.A. Jaffers. Bem clara a história, não
acha? Nomes e tudo.
— Deus! — invocou mais uma vez o sr. Marvel, olhando
nervosamente em volta e tentando contar o dinheiro em seu bolso
unicamente pelo tato, tomado de uma idéia estranha e nova. —
Parece espantoso.
— Não é? Extraordinário, é o que penso. Nunca ouvi
falar em Homem Invisível, nunca, mas hoje em dia ouve-se uma
quantidade de coisas extraordinárias... que. . .
— Foi só isso o que ele fez? — indagou o sr. Marvel,
tentando mostrar-se relaxado.
— Foi o bastante, não acha? — disse o marinheiro.
— E por acaso não voltou? — perguntou Marvel. —
Fugiu e tudo acabou, hein?
— Tudo. Mas por quê? Não acha o bastante?
— Mais do que bastante.
— Considero que foi o bastante — disse o marinheiro.
— Considero que foi o bastante.
— Ele não tinha amigos — o jornal não diz se tinha
amigos, diz? — perguntou, ansioso, o sr. Marvel.
— Uma única pessoa assim não chega para você? —
perguntou o marinheiro. — Não, graças a Deus, como se diz, não
tinha.
Balançou a cabeça lentamente. — A simples idéia desse
sujeito andando pelos campos, faz com que me sinta mal. No
momento está solto e, de acordo com certos indícios, acredita-se
que tenha seguido — que seguiu, acho que é o que querem dizer —
pela estrada de Port Stowe. Está vendo que estamos bem no
caminho! Desta vez, não é nenhum daqueles fenômenos
americanos. E pense só nas coisas que poderia fazer! Imagine se
resolvesse dar um pulo até aqui e cismasse com você? Suponhamos
que queira roubar — quem pode impedi-lo? Pode invadir
domicílios, pode assaltar, pode atravessar um cordão de polícia com
tanta facilidade quanto eu ou você poderíamos nos livrar de um
cego! Com mais facilidade! Pois esses sujeitos cegos, dizem, têm um
ouvido muitíssimo apurado. E, em qualquer lugar que houvesse
bebida que lhe agradasse. . .
— Realmente ele leva uma tremenda vantagem — disse o
sr. Marvel. — E, bem. ..
— Está certo — concordou o marinheiro. — Leva.
O sr. Marvel estivera o tempo todo observando
atentamente os arredores, procurando escutar passos leves,
tentando detectar movimentos imperceptíveis. Parecia a ponto de
tomar uma decisão muito importante. Tossiu, protegendo a boca
com a mão.
Olhou novamente ao seu redor, ouviu, inclinou-se para o
marinheiro e baixou a voz. — A verdade é que. . . Acontece que
sei. por fontes particulares, uma ou duas coisas a respeito desse
Homem Invisível.
— Oh! — exclamou o marinheiro, interessado. — Você?
— Sim — retrucou o sr. Marvel. — Eu.
— É verdade? — perguntou o marinheiro. — E posso
saber .. .
— O senhor ficará pasmo — disse o sr. Marvel por trás
da mão. — É tremendo.
— Realmente?
— O fato é — começou o sr. Marvel ansiosamente, em
voz discreta e confidencial. De repente sua expressão modificou-se
totalmente. — Ui! — gritou. Levantou-se do banco, muito tenso.
Seu rosto demonstrava com eloqüência um grande sofrimento
físico. — Uau! — gemeu.
— Que aconteceu? — quis saber o marinheiro,
preocupado.
— Dor de dentes — respondeu o sr. Marvel, e levou a
mão à orelha. Apanhando os livros, disse: — Acho que tenho que
ir andando. Escorregou estranhamente pelo banco, afastando-se de
seu interlocutor. — Mas estava a ponto de me falar sobre o tal
Homem Invisível! — protestou o marujo. O sr. Marvel pareceu
consultar seus botões. — É fraude — disse uma voz. — É fraude
— repetiu o sr. Marvel.
— Mas está nos jornais — disse o marinheiro.
— Mas não deixa de ser fraude — reafirmou o sr.
Marvel.
— Conheço o sujeito que espalhou o boato. Não há
nenhum Homem Invisível. . . Que diabo!
— E este jornal? Quer dizer que. . .
— Nem uma palavra — concluiu Marvel com firmeza.
O marinheiro arregalou os olhos, o jornal na mão. O sr.
Marvel virou-lhe as costas, em pequenos movimentos
espasmódicos. -— Espere um pouco — disse o marujo levantandose
e falando lentamente. — Quer dizer. . .?
— É isso mesmo — respondeu o sr. Marvel.
— Então por que me deixou falar e lhe contar toda essa
maldita história? Por que razão deixa um homem passar por idiota
dessa maneira? Hein?
O sr. Marvel bufou. O marinheiro, de repente, ficou
muito vermelho; cerrou os punhos. — Estive falando nestes
últimos dez minutos — disse — e você, seu barrigudinho cara de
vaca e filho da mãe, não podia ter a educação elementar. . .
— Não comece a me xingar de nomes — disse o sr.
Marvel.
— Xingar de nomes! O que tenho vontade é de. . .
— Vamos — disse uma voz e o sr. Marvel deu meiavolta
subitamente e começou a marchar de modo esquisito, aos
arrancos. — É melhor que dê o fora — disse o marinheiro. —
Quem está dando o fora? — desafiou o sr. Marvel. Estava se
retirando obliquamente em um passo estranho e apressado, com
saltos ocasionais e violentos para a frente. Em algum lugar da
estrada começou um monólogo resmungado, cheio de protestos e
recriminações.
— Sujeito estúpido! — gritou-lhe o marinheiro, as pernas
muito afastadas, as mãos nas cadeiras, olhando para a figura que se
distanciava. — Eu lhe mostro, sua besta. . . Enganando a mim! Está
aqui — no jornal!
O sr. Marvel replicou incoerentemente e desapareceu ao
longe em uma curva da estrada, mas o marinheiro ainda ficou de
pé, imponente, no meio da estrada, até que o carro do açougueiro o
fez abrir caminho. Então dirigiu-se a Port Stowe. — São umas
bestas extraordinárias — disse para si mesmo em voz baixa. — Só
queria me fazer um pouco de palhaço — essa era a piada idiota
dele. — Está no jornal!
E tinha havido uma outra coisa extraordinária da qual
tomaria conhecimento mais tarde e que acontecera bem perto dele.
Fora a visão de um punho fechado, cheio de dinheiro — nada
menos — que se locomovia sem uma razão visível, ao longo do
muro, na esquina da Alameda de St. Michael. Um colega
marinheiro tinha visto o fato miraculoso naquela mesma manhã.
Tentara agarrar o dinheiro e fora derrubado de cabeça e, quando se
levantara, o dinheiro-borboleta havia desaparecido. Nosso
marinheiro sempre estava disposto a acreditar em tudo, afirmara,
mas aquilo era forte demais. Porém, mais tarde, começou a refletir
sobre os acontecimentos.
A história do dinheiro voador era verdadeira. E em toda a
vizinhança o dinheiro fora subtraído, até da augusta Companhia de
Bancos de Londres e do Campo, das caixas das lojas e esta La — já
que, naquele dia de sol, todas as portas estavam completamente
abertas — e tinha sido visto saindo tranqüila e habilmente aos rolos
e mãos cheias, flutuando discretamente ao longo das paredes e em
lugares à sombra, ocultando-se com presteza de olhos humanos
que se aproximassem. E embora nenhum homem soubesse de
onde vinha, acabava sempre seu misterioso vôo no bolso do
agitado cavalheiro de velho chapéu lustroso, que tinha se sentado
do lado de fora da pequena estalagem perto de Port Stowe.
15
O HOMEM QUE CORRIA
Ao cair da noite, o dr. Kemp estava em seu escritório, no
mirante sobre a colina que dominava Burdock. Era um pequeno
aposento agradável, com três janelas que davam para o norte, oeste
e sul, estantes cheias de livros e publicações científicas, uma grande
escrivaninha e, sob a janela que abria para o norte, um microscópio,
lâminas de vidro, pequenos instrumentos, algumas culturas e vidros
espalhados de reagentes. A lâmpada solar do dr. Kemp estava
acesa, embora o céu ainda estivesse iluminado pela luz do
entardecer, e as persianas suspensas, pois não havia a possibilidade
de que passantes curiosos obrigassem-no a baixá-las. O dr. Kemp
era um jovem alto e magro, com cabelos de um louro desbotado e
bigodes quase brancos e o trabalho de que se ocupava lhe daria,
segundo esperava, o título de membro da Sociedade Real, tão
otimista era sua opinião a respeito dele.
Seus olhos, desviando-se do trabalho, contemplaram o
pôr-do-sol que ardia por trás da colina além daquela em que se
encontrava. Ficou parado, talvez por um minuto, mordendo a
ponta da caneta e admirando a bela cor dourada acima do topo,
quando sua atenção foi desviada pela minúscula silhueta
completamente negra de um homem que corria pela encosta em
direção a ele. Era um homenzinho pequeno e usava chapéu alto e
sua corrida era tão rápida que suas pernas, na verdade, piscavam
intermitentemente.
— Mais um daqueles idiotas — pensou. — Como aquele
asno que me deu um encontrão ao dobrar a esquina essa manhã;
com o seu "O Homem Invisível está chegando, senhor!" Não sei o
que há com essa gente. Até parece que estamos no século XIII.
Levantou-se, foi até a janela e fitou a encosta crepuscular
e a pequena figura negra que corria por ela. — Parece que está com
uma pressa dos diabos, mas não parece fazer muito progresso. Não
poderia correr mais pesadamente se tivesse os bolsos cheios de
chumbo.
— Mais depressa, senhor — disse o dr. Kemp.
No momento seguinte, a mais alta das casas que haviam
se estendido de Burdock colina acima, ocultou a silhueta que corria
Por um instante tornou-se novamente visível, mais uma vez e mais
outra, três vezes entre as três casas separadas que vinham a seguir e
depois o terraço o escondeu.
— Burros! — exclamou o dr. Kemp dando meia-volta e
dirigindo-se à sua mesa de trabalho.
Mas os que tinham visto o fugitivo mais de perto e
percebido o terror abjeto na face suada e que também estavam na
estrada aberta, não compartilhavam do desdém do doutor. O
homem continuava a martelar o chão e, enquanto corria, tilintava
como uma bolsa cheia, jogada de trás para a frente. Não olhava
para a direita nem para a esquerda: seus olhos dilatados fixavam
diretamente morro abaixo, onde os postes de iluminação estavam
sendo acesos e as pessoas se apinhavam na rua. A boca mal acabada
escancarava-se, uma espuma como clara de ovo havia se formado
em seus lábios e tinha a respiração rouca e barulhenta. Todos por
quem passava detinham-se e começavam a olhar a estrada para
cima e para baixo, interrogando uns aos outros com uma ponta de
ansiedade, sobre o que lhe causaria aquele ódio.
Então, bem mais acima na colina, um cão que brincava
na estrada ganiu e correu a esconder-se sob um portão e enquanto
ainda estavam tentando compreender, alguma coisa — um golpe de
vento, um tap, tap, tap, um som como uma respiração arquejante
— passou por eles.
Umas pessoas gritaram. Outras pularam do chão. Aquilo
propagou-se aos gritos, propagou-se por instinto, colina abaixo. Já
gritavam nas ruas, antes que Marvel estivesse a meio caminho de lá.
Trancavam as casas e batiam as portas por causa da notícia. Ele
ouviu e fez um esforço ainda mais desesperado. O medo chegou
em largas passadas, adiantou-se a ele e, em um momento, apossouse
da cidade.
— O Homem Invisível está chegando! O Homem
Invisível!
16
NO "JOLLY CRICKETERS
O "Jolly Cricketers" ficava bem no sopé da colina, onde
começavam as linhas dos bondes. O encarregado do bar apoiava os
braços gordos e vermelhos no balcão e falava de cavalos com um
cocheiro anêmico, enquanto um homem de barba negra, vestido de
cinza, engolia biscoitos e queijo, bebia Burton e conversava em
americano com um policial de folga.
— Que gritaria é essa? — perguntou o cocheiro anêmico,
interrompendo bruscamente a conversa e tentando olhar para o
alto da colina por cima da persiana amarela e suja da janela baixa da
estalagem. Alguém, do lado de fora, passou correndo. — Fogo,
talvez — respondeu o encarregado do bar.
Correndo pesadamente, passos se aproximaram, a porta
foi aberta com violência e Marvel, chorando, descabelado e sem
chapéu, a gola do casaco rasgada e aberta, precipitou-se para
dentro, deu uma volta brusca e tentou fechar a porta. Esta era
mantida meio aberta por um tirante de couro.
— Está vindo! — berrou, a voz estridente de terror. —
Ele está vindo. O Homem Invisível! Está me perseguindo! Pelo
amor de Deus! Socorro! Socorro! Socorro!
— Fechem as portas — ordenou o policial. — Quem
está vindo? Que barulhada é essa? — Foi até a porta, soltou o
tirante e esta fechou-se. O americano fechou a outra porta.
— Deixem-me entrar — suplicou Marvel, cambaleante e
em prantos, mas ainda agarrado aos livros. — Deixem-me entrar.
Tranquem-me em algum lugar — qualquer um. Estou dizendo, ele
está me perseguindo. Escapei dele. Disse que me mataria e vai me
matar.
— Está a salvo — tranqüilizou-o o homem da barba
negra. — A porta está fechada. Qual é o problema?
— Deixem-me ir para dentro — implorou Marvel e
gritou alto quando, subitamente, uma pancada fez tremer a porta
trancada e foi seguida de batidas rápidas e gritos vindos de fora. —
Ei — interpelou o policial. — Quem está aí? — O sr. Marvel
começou a atirar-se desesperadamente contra os painéis que
pareciam portas. — Ele vai me matar. Tem uma faca ou coisa
assim. Pelo amor de Deus!
— Está bem — disse o encarregado do bar. — Venha
para cá. — E levantou a aba móvel do balcão.
O sr. Marvel precipitou-se para trás do balcão do bar,
enquanto as batidas do lado de fora se repetiam. — Não abram a
porta — berrou. — Por favor, não abram a porta. Onde posso me
esconder?
— Então é mesmo o Homem Invisível? — perguntou o
homem de barba negra, com uma das mãos por trás das costas. —
Acho que já é tempo de o vermos.
De repente, a janela da estalagem foi quebrada e houve
gritos e correrias de um lado para outro na rua. O policial tinha
subido em um banco para olhar para fora, esforçando-se para ver
quem estava à porta. Desceu, com as sobrancelhas erguidas. —
Acho que é — disse. O encarregado do bar postou-se diante da
porta do salão do bar que tinha sido fechada trancando o sr.
Marvel, examinou a janela quebrada e aproximou-se dos dois
outros homens.
Repentinamente, tudo ficou quieto. — Gostaria de ter
meu cassetete — disse o policial, caminhando com hesitação para a
porta. — Se abrirmos, ele entra. Não há como impedi-lo.
— Não se apresse muito com essa porta — disse o
cocheiro anêmico, cheio de ansiedade.
— Tire as trancas — propôs o homem de barba negra —
e se ele entrar. . . Exibiu o revólver que tinha na mão.
— Isso não — objetou o policial. — Isso é assassinato.
— Sei em que país estou — disse o barbado. — Vou
atirar nas pernas. Tirem as trancas.
— Não com essa coisa disparando por trás de mim —
objetou o encarregado, tentando enxergar por cima das persianas.
— Muito bem — disse o homem da barba negra e,
abaixando-se, o revólver engatilhado, tirou-as ele mesmo. O
homem do bar, o cocheiro e o policial deram meia-volta.
— Entre — convidou o homem da barba em voz baixa,
recuando e ficando de frente para as portas destrancadas, com o
revólver atrás das costas. Ninguém entrou. A porta continuou
fechada. Cinco minutos depois, quando um segundo cocheiro
enfiou a cabeça para dentro, cuidadosamente, ainda estavam
esperando e um rosto aflito surgiu por trás do bar e esclareceu. —
Todas as portas da casa estão fechadas? — perguntou Marvel.
— Está dando a volta. Cercando. É mais astuto do que o
diabo.
— Deus do céu! — exclamou o corpulento homem do
bar.
— Há os fundos! Cuidado com as portas dos fundos!
Escutem! — Impotente, olhou em volta. A porta do salão bateu e
ouviram a chave girar na fechadura. — Há a porta do pátio e a
porta particular. A porta do pátio...
Saiu do bar apressadamente.
Pouco depois apareceu com um facão. — A porta do
pátio estava aberta — comunicou e o gordo lábio inferior ficou
pendente.
— Pode estar na casa agora! — arriscou o primeiro
cocheiro.
— Não está na cozinha — respondeu o homem do bar.
— Há duas mulheres lá e golpeei cada centímetro dela com este
pequeno cortador de carne. Elas não acham que tenha entrado.
Não notaram..
— Você a fechou? — perguntou o primeiro cocheiro.
— Não estou usando saias — replicou o encarregado do
bar. O homem barbado guardou o revólver. Mas no momento em
que o fez a aba do bar que estava levantada caiu, fechando-se, o
trinco estalou e então, com um barulho tremendo a fechadura da
porta arrebentou e a porta do salão do bar escancarou-se com
estrondo. Ouviram Marvel guinchar como uma lebre apanhada e
imediatamente pularam o balcão para socorrê-lo. O revólver do
homem barbado estalou e o espelho, no fundo do salão, quebrouse,
brilhante, e desabou, tilintando.
Quando o homem do bar entrou na sala, viu Marvel
estranhamente encolhido e lutando contra a porta que levava à
cozinha e ao pátio. Mas, enquanto ele hesitava, a porta abriu-se de
súbito e Marvel foi arrastado para a cozinha. Ouviu-se um grito e
depois um choque de panelas. Marvel, de cabeça baixa e tentando
obstinadamente não se deixar carregar foi forçado a transpor a
porta da cozinha e os trincos cerraram-se.
O policial, que estava tentando passar à frente do
encarregado do bar entrou correndo, seguido por um dos
cocheiros, agarrou o pulso da mão invisível que segurava Marvel
pelo pescoço, levou um soco no rosto e foi atirado para trás,
rodopiando. A porta abriu-se e Marvel fez um esforço desesperado
para colocar-se atrás dela. Então o cocheiro tocou alguma coisa. —
Peguei-o — exclamou. As mãos vermelhas do encarregado do bar,
em garra, procuravam o invisível. — Aqui está! — disse.
O sr. Marvel, subitamente livre, caiu no chão e fez uma
tentativa de engatinhar entre as pernas dos homens que lutavam. A
luta continuou aos solavancos, até perto da porta. Pela primeira
vez, ouviu-se a voz do Homem Invisível gritando alto quando o
policial pisou em seu pé. Depois gritou mais uma vez,
vigorosamente e seus punhos voaram à sua volta como se fossem
malhos. O cocheiro gemeu de repente e seu corpo dobrou-se com
um golpe abaixo do diafragma. A porta que dava da cozinha para o
salão foi batida e cobriu a retirada do sr. Marvel. Os homens na
cozinha ficaram segurando e lutando com o vazio do ar.
— Para onde foi ele? — indagou o homem da barba. —
Para fora?
— Por aqui — disse o policial, passando para o pátio e
detendo-se.
Um pedaço de telha passou, assoviando, sobre sua cabeça
e quebrou-se entre as louças na mesa da cozinha.
— Vou mostrar a ele — berrou o homem da barba negra
e, de repente, um cano de aço brilhou sobre o ombro do policial e
cinco balas seguiram umas as outras até a penumbra de onde tinha
vindo o projétil. Ao atirar, o homem barbado movia a mão em uma
curva horizontal, de forma que os tiros irradiaram-se pelo pátio
estreito como os raios de uma roda.
Seguiu-se o silêncio. — Cinco cápsulas — disse o homem
da barba negra. — É o melhor. Quatro ases e o coringa. Alguém
pegue uma lanterna, venha e procure encontrar o corpo dele.
17
O VISITANTE DO DR. KEMP
O dr. Kemp tinha continuado a escrever em seu
escritório, até que os tiros lhe chamaram a atenção. Craque, craque,
craque, os estalidos seguiam-se uns aos outros.
— Ei! — exclamou o dr. Kemp, pondo a caneta
novamente na boca e ouvindo. — Quem está disparando
revólveres em Burdock? Que é que os idiotas estão fazendo agora?
Foi até a janela que dava para o sul, abriu-a e
debruçando-se, olhou para baixo, para o aglomerado de janelas,
globos dos lampiões de gás e lojas entremeados pelos intervalos
negros de telhados e pátios, que caracterizavam a cidade à noite. —
Parece que há um ajuntamento no sopé da colina, junto ao
"Cricketers" — disse, e ficou observando. Dali seu olhar vagueou
pela cidade até mais longe, onde brilhavam as luzes dos navios e o
embarcadouro destacava-se vivamente, um pequeno pavilhão
iluminado como uma pedra preciosa de reflexos amarelados. A lua,
no quarto crescente, aparecia sobre a colina a oeste, e as estrelas
estavam límpidas, com um fulgor quase tropical.
Após cinco minutos, durante os quais sua mente passara
a uma remota especulação a respeito das condições sociais do
futuro e acabara por perder-se em cogitações sobre a dimensão do
tempo, o dr. Kemp voltou a si com um suspiro, fechou outra vez a
janela e voltou à escrivaninha.
Devia ter-se passado quase uma hora, quando a
campainha da porta da frente soou. Estivera escrevendo sem muito
interesse, com intervalos de abstração, desde que os tiros haviam
sido disparados. Ouviu a empregada atender à porta e esperou pelo
ruído de passos subindo a escada, porém ela não veio. — Não
imagine quem poderia ter sido — resmungou o dr. Kemp.
Tentou retomar o trabalho, não conseguiu, levantou-se,
desceu as escadas do escritório até o patamar, tocou a campainha e,
da balaustrada, perguntou, ao ver a empregada aparecer no
vestíbulo embaixo. — Era uma carta?
— Tocaram e correram, senhor — respondeu ela.
— Estou inquieto esta noite — disse a si mesmo. Voltou
ao escritório e dessa vez atacou o trabalho resolutamente. Em
pouco tempo estava mergulhado nele e os únicos sons no aposento
eram o tiquetaquear do relógio e o discreto arranhar de sua pena
atarefada, bem no centro do círculo de luz que o abajur projetava
sobre a mesa.
Só às duas horas o dr. Kemp encerrou o trabalho da
noite. Levantou-se, bocejou, e desceu para deitar-se. Já tinha tirado
o paletó e o colete, quando percebeu que estava com sede. Pegou
uma vela e desceu até a sala de jantar em busca de um sifão e
uísque.
Os interesses científicos do dr. Kemp haviam feito dele
um homem muito observador e, voltando pelo corredor, notou
uma mancha escura no linóleo, junto ao tapete ao pé da escada.
Subiu-a e então, de repente, ocorreu-lhe perguntar-se que mancha
poderia ser aquela no linóleo. Ao que parece, impelia-o algum
elemento subconsciente. De qualquer forma, voltou-se com as
coisas que carregava, foi até o vestíbulo, largou o sifão e o uísque e,
abaixando-se, tocou a mancha. Sem muita surpresa, descobriu que
era pegajosa e da cor do sangue meio coagulado.
Pegou novamente os objetos e foi de novo para cima,
olhando a seu redor e tentando explicar a mancha de sangue. No
patamar da escada viu algo que o fez parar, surpreso. A maçaneta
da porta do quarto estava manchada de sangue.
Olhou para as mãos. Continuavam absolutamente limpas
e então lembrou-se de que a porta do quarto estava aberta quando
descera do escritório e que, por isso, nem sequer tocara a maçaneta.
Entrou imediatamente, o rosto calmo — talvez um pouco mais
decidido do que o habitual. Seu olhar, passeando especulativamente,
deteve-se na cama. A colcha estava cheia de sangue e o
lençol fora rasgado. Não o tinha notado antes porque havia se
encaminhado diretamente para a cômoda. Do lado oposto da cama,
os lençóis mostravam uma depressão, como se alguém tivesse se
sentado ali recentemente.
Então, teve a estranha impressão de que ouvira uma voz
dizer alto: — Deus do céu! Kemp! — Mas o dr. Kemp não
acreditava em vozes.
Ficou parado, olhando fixamente para os lençóis em
desordem. Teria aquilo sido realmente uma voz? Examinou
novamente o quarto, mas não viu nada além da cama desarrumada
e manchada de sangue. Então ouviu nitidamente um movimento do
outro lado do quarto, perto do suporte da bacia de mãos. Todos os
homens, por mais instruídos que sejam, retêm alguns vestígios de
superstição. A sensação que é chamada de "sobrenatural" apossouse
dele. Fechou a porta, foi até a cômoda e pôs as coisas que trazia
em cima dela. De repente, com um sobressalto, divisou uma
atadura feita de um pedaço de linho, enrolada e manchada de
sangue, pendendo do ar, entre ele e a bacia.
Olhou para aquilo, cheio de pasmo. Era uma atadura
vazia, uma atadura muito bem aplicada, mas inteiramente vazia.
Quis adiantar-se para pegá-la, mas um toque e uma voz que falava
bem perto dele o detiveram.
— Kemp! — disse a Voz.
— Hein? — respondeu Kemp, de boca aberta.
— Mantenha-se calmo — falou a Voz. — Sou um
Homem Invisível.
Por algum tempo Kemp não respondeu, de olhos fitos na
atadura. — Homem Invisível — repetiu.
A história que contribuíra para ridicularizar de manhã,
perpassou-lhe pela mente. Naquele momento, ao que parecia, não
ficou muito assustado ou excessivamente amedrontado. A
compreensão veio depois.
— Pensei que tudo fosse mentira — disse. A lembrança
das discussões muitas vezes repetidas durante a manhã dominavalhe
os pensamentos. — Você está com uma atadura? — perguntou,
— Sim — respondeu o Homem Invisível.
— Oh! — exclamou Kemp e depois irritou-se. — Claro!
— disse. — Mas isso é tolice. É algum truque. — Avançou
subitamente e sua mão, estendida para a atadura, tocou dedos
invisíveis.
Recuou, fugindo ao contato e seu rosto mudou de cor.
— Calma, Kemp, pelo amor de Deus! Preciso muito de
ajuda. Pare!
A mão segurou-lhe o braço. Ele repeliu-a.
— Kemp! — gritou a Voz. — Kemp! Mantenha a calma!
— e a pressão em seu braço aumentou.
Um desejo irracional de libertar-se, tomou conta de
Kemp. A mão correspondente ao braço da atadura agarrou-lhe o
ombro e, repentinamente, recebeu uma rasteira e foi atirado de
costas sobre a cama. Abriu a boca para gritar e a ponta do lençol foi
enfiada entre seus dentes. O Homem Invisível o mantinha à força,
mas os braços continuavam livres e desferiu um soco, tentando
selvagemente dar pontapés ao mesmo tempo.
— Ouça a voz da razão, está bem? — disse o Homem
Invisível segurando-o, apesar de estar levando socos nas costelas.
— Por Deus! Daqui a pouco você vai me irritar! Fique quieto,
idiota! — berrou o Homem Invisível no ouvido de Kemp.
Este lutou um pouco mais e depois ficou imóvel.
— Se gritar, rebento sua cara — advertiu o Homem
Invisível, liberando-lhe a boca. — Sou um Homem Invisível. Não é
tolice nem feitiçaria. Sou realmente um Homem Invisível. E quero
sua ajuda. Não pretendo machucar você, mas se se comportar
como um labrego apavorado, terei que fazê-lo. Não se lembra de
mim, Kemp? — Griffin, do Colégio Universitário?
— Deixe-me levantar — disse Kemp. — Não sairei de
onde estou. Deixe-me sentar calmamente um minuto.
Sentou-se e apalpou o pescoço.
— Sou Griffin, do Colégio Universitário e tornei-me
invisível. Sou apenas um homem comum — um homem que você
conheceu ... e que ficou invisível.
— Griffin? — repetiu Kemp.
— Griffin — confirmou a Voz —, um estudante mais
moço, quase albino, de perto de um metro e noventa, forte, com
um rosto cor-de-rosa e olhos vermelhos — aquele que ganhou uma
medalha em química.
— Estou confuso — queixou-se Kemp. — Meu cérebro
parece um turbilhão. Que tem isso a ver com Griffin?
— Eu sou Griffin.
Kemp pensou. — É espantoso — disse. — Mas que tipo
de bruxaria acontece para tornar um homem invisível?
— Não é bruxaria. É um procedimento racional e
bastante inteligível. . .
— É espantoso — repetiu Kemp. — Mas como. . .?
— É espantoso, concordo. Mas estou ferido, com dor e
cansado. . . Meu Deus! Kemp, você é homem. Controle-se. Dê-me
o que comer e beber e deixe-me sentar aqui.
Kemp contemplou fixamente a atadura que se movia pelo
quarto, depois viu uma cadeira de vime ser arrastada pelo chão até
chegar perto da cama. Ouviu um rangido e o assento afundou
talvez uns poucos centímetros. Esfregou os olhos e tateou o
pescoço de novo. — Isso é mais do que ver fantasmas — disse, e
riu estupidamente.
— Assim é melhor. Graças a Deus, está voltando a ser
sensato!
— Ou tolo — disse Kemp, pressionando os olhos com
os nós dos dedos.
— Dê-me um pouco de uísque. Estou quase morto.
— Não me pareceu. Onde está? Se me levantar vou
esbarrar em você? Ah! Está certo. Uísque? Aqui. Onde vou lhe
entregar?
A cadeira rangeu e Kemp sentiu que lhe tiravam o copo.
Soltou-o com esforço; seu instinto era contrário. Este foi parar a
uns quarenta centímetros acima da parte da frente do assento da
cadeira. Olhava para tudo com infinita perplexidade. — Isso é. . .
isso deve ser. . . hipnotismo. Você deve ter sugerido que é invisível.
— Bobagem — disse a Voz.
— É uma loucura.
— Ouça-me.
— Esta manhã, demonstrei, conclusivamente —
começou Kemp —, que a invisibilidade. ..
— Esqueça o que demonstrou! Estou morto de fome —
disse a Voz — e a noite é gelada, para um homem sem roupas.
— Comida! — exclamou Kemp.
A garrafa de uísque inclinou-se. — Sim — disse o
Homem Invisível com ênfase. — Tem um roupão?
Kemp soltou uma interjeição a meia voz. Foi ao guardaroupas
e retirou um roupão de um vermelho encardido. — Isso
serve? — perguntou. Arrancaram-no dele. Por um momento,
pendeu molemente no ar, agitou-se estranhamente e parou, cheio,
abotoando-se decorosamente e sentou-se na cadeira. — Calças,
meias e chinelos seriam um conforto —, disse o Estranho
secamente. — E comida.
— O que quiser. Mas esta é a situação mais insana em
que já estive, em toda a minha vida!
Remexeu as gavetas para apanhar os artigos exigidos e
depois foi para baixo, a fim de saquear a despensa. Voltou com
costeletas frias e pão, pegou uma mesa leve e colocou-a diante do
hóspede. — Não se incomode com facas, disse o visitante, e uma
costeleta ficou no ar, com um barulho de estar sendo roída.
— Incrível! — resmungou Kemp e sentou-se em uma
das cadeiras do quarto.
— Sempre gostei de vestir alguma coisa antes de comer
— disse o Homem Invisível com a boca cheia, comendo
avidamente. — É uma estranha mania.
— Suponho que esse pulso esteja bem — disse Kemp.
— Pode confiar em mim — respondeu o Homem
Invisível.
— Entre todas as coisas fantásticas e miraculosas. . .
— Exatamente. Mas é esquisito que tenha vindo parar
em sua casa para arranjar uma bandagem. Meu primeiro golpe de
sorte. De qualquer maneira, já tinha resolvido dormir aqui esta
noite. Você vai ter que aturar isso! É desagradável que meu sangue
apareça, não é? Um belo coágulo lá embaixo. Vai ficando visível à
medida em que coagula, vejo agora. Há três horas que estou na
casa.
— Mas como pode ser feito? — começou Kemp, em um
tom exasperado. — Que diabo! Todo esse negócio.... é irracional,
do princípio ao fim.
— Muito lógico — disse o Homem Invisível. —
Perfeitamente lógico.
Estendeu a mão e pegou a garrafa de uísque. Kemp
contemplou o roupão esfomeado. Um raio de luz de vela,
penetrando em um pedaço rasgado da roupa à altura do ombro
direito, desenhou um triângulo de luz sob as costelas esquerdas. —
Que tiros "eram aqueles? — perguntou. — Como começou o
tiroteio?
— Havia um asno de um homem. . . uma espécie de
cúmplice — que vá para o inferno! — Que tentou roubar-me
dinheiro. Que roubou.
— É invisível também?
— Não.
— E então?
— Posso comer mais alguma coisa antes de lhe contar
tudo? Estou com fome — e com dor. E quer que conte histórias!
Kemp levantou-se. — Você não deu nenhum tiro? —
perguntou. — Eu não — respondeu o visitante. — Algum idiota a
quem nunca tinha visto, atirou a esmo. Muitos deles ficaram com
medo. Todos ficaram com medo de mim. Que vão para o inferno!
Escute, quero comer mais do que isso, Kemp.
— Vou ver lá embaixo o que ainda há para comer —
disse Kemp. — Lamento, mas não é muito.
Depois de acabar de comer, e tinha sido uma refeição
farta, o Homem Invisível pediu um charuto. Mordeu
vigorosamente a ponta, antes que Kemp pudesse encontrar um
canivete e xingou quando a folha externa soltou-se. Era estranho
vê-lo fumar: a boca, garganta, faringe e narinas tornaram-se visíveis
como uma espécie de molde rodopiante de fumaça.
— O bendito prazer de fumar! — exclamou ele e exalou
com força. — Tive sorte de encontrar você, Kemp. Tem que me
ajudar. Imagine, esbarrar com você neste momento! Estou em um
apuro terrível. Acho que devia estar louco. Os apertos que passei!
Mas ainda vamos realizar grandes coisas. Deixe que lhe diga. ..
Serviu-se de mais uísque e soda. Kemp levantou-se,
olhou a seu redor e apanhou um copo para ele no quarto de
hóspedes. — É loucura, mas suponho que eu posso beber.
— Você não mudou muito, Kemp, nesses doze anos. Os
homens claros não mudam. Frios e metódicos. .. depois do
primeiro fracasso. Tenho que lhe contar. Trabalharemos juntos!
— Mas como foi feito? — perguntou Kemp. — E como
ficou assim?
— Pelo amor de Deus, deixe-me fumar em paz, só um
pouquinho! Depois vou começar a contar.
Mas a história não foi contada àquela noite. O pulso do
Homem Invisível estava ficando doloroso, sentia-se febril, exausto
e sua mente fixou-se na perseguição colina abaixo e na luta perto da
estalagem. Falando em Marvel intermitentemente, passou a fumar
mais depressa e a voz foi ficando colérica. Kemp tentava entender
o que era possível.
— Ele tinha medo de mim, podia-se ver que tinha medo
de mim — disse o Homem Invisível muitas vezes. — Pretendia me
dar o fora... estava sempre se afastando! Que idiota fui!
— O canalha!
— Devia tê-lo morto...
— Onde arranjou o dinheiro? — perguntou Kemp
bruscamente.
Por algum tempo, o Homem Invisível guardou silêncio.
— Não posso dizer esta noite.
De súbito gemeu e inclinou-se para a frente, apoiando a
cabeça invisível em mãos invisíveis. — Kemp — disse — não
durmo há quase três dias, exceto por uns dois cochilos de uma hora
mais ou menos. Preciso dormir o quanto antes.
— Bem, use o meu quarto — use este quarto.
— Mas como posso dormir? Se dormir, ele foge. Ai! Que
importa?
— Como é o ferimento? — perguntou Kemp.
— Nada — um arranhão e sangue. Oh, Deus! Como
quero dormir!
— Por que não?
O Homem Invisível pareceu estar observando Kemp. —
Porque faço objeção a ser apanhado por meus semelhantes — disse
lentamente.
Kemp estremeceu.
— Que louco sou! — disse ele, dando uma violenta
pancada na mesa. — Pus a idéia em sua cabeça.
18
O HOMEM INVISÍVEL DORME
Embora exausto e ferido como estava, o Homem
Invisível recusou-se a aceitar a palavra de Kemp de que sua
liberdade seria respeitada. Examinou as duas janelas do quarto,
subiu as persianas e abriu as cortinas para conferir a informação de
Kemp de que uma fuga através delas seria possível. Lá fora a noite
estava tranqüila e parada e a lua nova banhava a colina. Depois
examinou as chaves do quarto de dormir e as duas portas do quarto
de vestir, para convencer-se de que aquelas também poderiam
servir para lhe assegurar a liberdade. Finalmente declarou-se
satisfeito. Ficou de pé, junto à lareira e Kemp ouviu o som de um
bocejo.
— Desculpe — disse o Homem Invisível — se não
posso lhe contar o que fiz esta noite. Mas estou esgotado. Sem
dúvida, é grotesco. É espantoso! Mas acredite, Kemp, é uma coisa
realmente possível. Fiz uma descoberta. Pretendia guardá-la só para
mim. Mas não posso. Tenho que ter um sócio. E você... Há tanta
coisa que podemos fazer. . . Amanhã. Agora, Kemp, sinto que
preciso dormir ou morro.
Kemp estava no meio do quarto, olhando a roupa sem
cabeça. — Acho que devo deixá-lo — disse. — É incrível. Se
acontecessem três coisas assim, derrubando todas as minhas idéias
preconcebidas, ficaria louco. Mas é verdade! Há mais alguma coisa
que possa lhe dar?
— Só me dê boa-noite — respondeu Griffin.
— Boa-noite — disse Kemp, e apertou uma mão
invisível. Caminhou meio de lado para a porta. De repente, o
roupão aproximou-se dele. — Compreenda! — disse — nada de
tentativas de me tolher ou capturar. Ou. ..
A expressão do rosto de Kemp mudou um pouco. —
Pensei que tinha lhe dado minha palavra — protestou.
Ao sair, Kemp fechou a porta sem barulho e
imediatamente esta foi trancada a chave. Então, enquanto ele ainda
permanecia com um ar de espanto inerte, pés ligeiros chegaram até
a porta do quarto de vestir e esta também foi trancada. Kemp bateu
com a mão na testa. — Estarei sonhando? O mundo ficou doido
ou fiquei eu?
Sorriu e passou a mão pela porta fechada. — Fui barrado
de meu próprio quarto por um absurdo clamoroso!
Andou até o alto da escada, voltou-se e olhou fixamente
as portas fechadas. — É um fato — disse. Pôs os dedos no
pescoço ligeiramente dolorido. — Um fato inegável! Mas... —
Sacudiu a cabeça, desanimado e desceu.
Acendeu a lâmpada da sala de jantar, pegou um charuto e
começou a caminhar pela sala, falando sozinho. De vez em quando
argumentava consigo mesmo.
— Invisível?
— Existe algum animal invisível? No mar, sim. Milhares!
Milhões! Todas as larvas, todos os pequenos náuplios e tomarias,
todas as coisas microscópicas, a medusa. No mar, há mais coisas
invisíveis do que visíveis! Nunca pensei nisso antes. E nos charcos
também. Todas as pequenas coisas que vivem nos charcos —
fragmentos de gelatina translúcida. Mas no ar? Não!
— Não pode ser.
— Mas afinal, por que não?
— Se um homem fosse feito de vidro, ainda assim seria
visível.
Sua meditação tornou-se profunda. O volume de três
charutos tinha passado a ser invisível, ou então difuso sob a forma
de cinza branca, até que falou novamente. Mas foi apenas uma
exclamação. Voltou-se, saiu da sala, foi até o pequeno consultório e
acendeu o gás. O aposento era pequeno porque o dr. Kemp não
vivia da clínica; lá estavam os jornais do dia. O jornal da manhã
tinha sido aberto descuidadamente e posto de lado. Apanhou-o,
virou as páginas e leu o texto da "História Misteriosa em Iping", a
mesma que o marinheiro em Port Stowe havia soletrado tão
penosamente para o sr. Marvel. Kemp leu-a depressa.
— Embrulhado! — exclamou. — Disfarçado!
Escondendo-se! Ninguém parece ter percebido sua infelicidade!
Que diabo de jogo é o dele?
Largou o jornal e buscou com os olhos. — Ah! — disse,
e pegou a St. James Gazette, que ainda estava dobrada como chegara.
— Agora vamos descobrir a verdade. — Rasgou a cinta de papel e
abriu o jornal; umas duas colunas chamaram-lhe a atenção. "Toda
Uma Aldeia em Sussex Enlouquece", era a manchete.
Meu Deus — explodiu Kemp, lendo avidamente um
incrível relato dos acontecimentos em Iping na tarde anterior, os
mesmos que já foram descritos. A narrativa do jornal da manhã
fora transcrita.
Releu-a. "Correu pelas ruas batendo à direita e esquerda.
Jaffers, inconsciente. O sr. Huxter muito ferido, ainda incapaz de
descrever o que vira. Humilhação terrível — o vigário. Uma mulher
doente de medo! Janelas quebradas. Essa história extraordinária era,
provavelmente, inventada. Boa de mais para não ser impressa... cum
grano!"
Largou o jornal e ficou olhando para a frente, sem
entender — Provavelmente inventada!
Pegou o jornal de novo e releu tudo. — Mas onde entra
o Vagabundo? Por que diabos estaria perseguindo um Vagabundo?
Sentou-se bruscamente na mesa de exames. — Ele não é
apenas invisível, é louco — disse. — Homicida!
Quando a madrugada chegou para misturar sua claridade
à luz da lâmpada e à fumaça de charuto na sala de jantar, Kemp
ainda estava andando de um lado para outro, tentando aprender o
incrível.
Sentia-se excitado demais para dormir. Os criados, ao
descerem sonolentamente, descobriram-no ali e pensaram que o
estudo demasiado tinha lhe feito mal. O patrão deu-lhes instruções
estranhas, mas bastante explícitas, para servirem o desjejum para
dois no escritório do mirante e depois limitarem-se ao porão e ao
pavimento térreo. E continuou a percorrer a sala de jantar, até que
o jornal da manhã chegou. Este falava muito, mas dizia pouco,
além da confirmação da notícia da noite anterior e um relato
bastante mal escrito de outra história notável em Port Burdock.
Tudo aquilo forneceu a Kemp o essencial sobre os acontecimentos
no bar "Jolly Cricketers" e o nome de Marvel. "Obrigou-me a ficar
com ele vinte e quatro horas", testemunhava Marvel. Acrescentara
também certos detalhes menos importantes à história de Iping,
principalmente o corte do fio de telégrafo da aldeia. Mas não havia
nada que esclarecesse a ligação entre o Homem Invisível e o
Vagabundo; pois o sr. Marvel não dera informações sobre os três
livros e o dinheiro que lhe enchia os bolsos. O tom de
incredulidade desaparecera e um bando de repórteres e
investigadores já estava a postos para elaborar a matéria.
Kemp leu cada linha da história e mandou a criada
comprar todos os jornais da manhã que pudesse. E também os
devorou.
— Ele é invisível! — concluiu. — E parece que sua raiva
está se tornando maníaca! As coisas que pode fazer! As coisas que
pode fazer! E está lá em cima, livre como o ar. Como devo agir?
— Por exemplo, seria quebrar a palavra se. . .? Não.
Foi até uma pequena mesa desarrumada em um canto e
começou a escrever um bilhete. Rasgou-o quando já estava pela
metade e escreveu outro. Leu-o e pensou bastante. Então pegou
um envelope e endereçou-o ao "Coronel Adye, Port Burdock".
Enquanto Kemp se ocupava disso, o Homem Invisível
acordou. Despertou de mau humor e Kemp, atento a cada som,
ouviu de repente o ruído de seus passos correndo pelo quarto
acima. Depois uma cadeira foi atirada e o lavatório com a bacia
quebraram-se. Kemp apressou-se a subir e bateu na porta,
ansiosamente.
19
CERTOS PRINCÍPIOS BÁSICOS
— Que aconteceu? — perguntou Kemp, quando o
Homem Invisível deixou-o entrar.
A resposta foi: — Nada.
— Mas, que diabo! E o estrondo?
— Um acesso de raiva — respondeu o Homem Invisível.
— Esqueci o braço e está doendo.
— Você parece dado a esse tipo de coisa.
— Sou.
Kemp atravessou o quarto e apanhou os fragmentos de
vidro quebrado. — Já se sabe de todos os fatos sobre você —
disse-lhe, ali de pé, com os vidros na mão —; tudo o que aconteceu
em Iping e na encosta da colina. O mundo tomou consciência de
seu cidadão invisível. Mas ninguém sabe que está aqui.
O Homem Invisível xingou.
— O segredo foi descoberto. Imagino que fosse segredo.
Não sei quais são os seus planos mas, naturalmente, estou pronto a
ajudar.
O Homem Invisível sentou-se na cama.
— Há café lá em cima — disse Kemp, falando com a
maior naturalidade possível e teve o prazer de ver que o estranho
hóspede levantava-se de boa vontade. Kemp foi na frente, subindo
a escada estreita até o mirante.
— Antes que possamos fazer qualquer outra coisa,
preciso compreender um pouco mais sobre sua invisibilidade —
disse Kemp. Relanceou nervosamente pela janela e sentou-se com
o ar de um homem que tem coisas a dizer. Suas dúvidas sobre a
sanidade de toda aquela história aflorou-lhe à mente e desapareceu
de novo, quando olhou para o lugar que Griffin ocupava à mesa do
café — um. roupão sem cabeça e sem mãos, enxugando lábios
invisíveis em um guardanapo miraculosamente seguro.
— É bastante simples — e bastante verossímil — disse
Griffin, pondo de lado o guardanapo e apoiando a cabeça invisível
em uma mão invisível.
— Para você sim, sem dúvida, mas... — Kemp riu.
— Bem, de fato, a princípio pareceu-me maravilhoso.
Porém agora, meu Deus! Mas juntos ainda faremos grandes coisas!
Descobri o princípio em Chesilstowe.
— Chesilstowe?
— Fui para lá, quando deixei Londres. Sabe que
abandonei a medicina para dedicar-me à física? Não? Bem, foi o
que fiz. A luz me fascinava.
— Ah!
— A densidade ótica. Seu campo é uma rede de enigmas,
com soluções brilhando fugazmente. E, tendo apenas vinte e dois
anos e um grande entusiasmo, pensei: "Vou dedicar minha vida a
isso. Vale a pena." Você sabe como somos ingênuos aos vinte e
dois anos.
— Ingênuos nessa época ou ingênuos agora.
— Como se o saber trouxesse qualquer satisfação a um
homem!
— Mas comecei a trabalhar — como um escravo. E mal
tinha começado a trabalhar e a pensar no assunto, apenas seis
meses, quando, de repente, a luz atravessou uma das malhas,
subitamente ofuscante! Descobri um princípio geral de pigmentos e
refração — uma fórmula, uma expressão geométrica envolvendo
quatro dimensões. Tolos e homens comuns, e até os matemáticos
comuns, não sabem nada sobre o que certas expressões gerais
podem significar para o estudante de física molecular. Nos livros —
os livros que o Vagabundo escondeu — há maravilhas, milagres!
Mas aquele não era um método, era uma idéia que poderia levar a
um método, através do qual seria possível, sem modificar qualquer
outra propriedade da matéria — exceto as cores, em alguns casos
— baixar o índice de refração de uma substância, sólida ou líquida,
para o do ar — visando todos os propósitos.
— Ufa! — exclamou Kemp. — Isso é estranho! Mas
ainda não vejo. . . Compreendo que, a partir dali, você poderia
anular uma pedra preciosa, mas a invisibilidade pessoal está muito
longe disso.
— Exatamente — disse Griffin. — Mas considere: a
visibilidade depende da ação dos corpos visíveis sobre a luz. Ou um
corpo absorve a luz ou a reflete, ou então faz tudo isso. Se ele não
reflete, refrata nem absorve a luz, não pode, por si só, ser visível.
Você vê uma caixa vermelha opaca, por exemplo, porque a cor
absorve alguma luz e reflete o resto — toda a parte vermelha da luz
— para você. Se ela não absorvesse nenhuma parte específica da
luz, mas a refletisse totalmente, então seria uma brilhante caixa
branca. Prata! Uma caixa feita de brilhantes não absorveria muita
luz, nem refletiria muito da superfície total, mas apenas aqui e ali,
onde as superfícies fossem favoráveis, a luz seria refletida e
refratada e você teria uma aparência brilhante de clarões de reflexos
e transparências — uma espécie de esqueleto de luz. Uma caixa de
vidro não seria tão cintilante nem tão claramente visível como uma
caixa de brilhantes, pois haveria menos refração e reflexão.
Entende? Sob certos ângulos, poder-se-ia ver claramente através
dela. Alguns tipos de vidro seriam mais visíveis do que outros, uma
caixa de cristal seria mais reluzente do que uma caixa de vidro de
janela comum. Uma caixa de vidro comum muito fino seria difícil
de ver em pouca luz, porque não absorveria quase nenhuma luz e
refrataria e refletiria muito pouca. E se se pusesse uma placa de
vidro branco na água, ou mais ainda, se se usasse algum líquido
mais denso que a água, ela desapareceria quase totalmente, porque a
luz que passaria da água para o vidro, seria apenas levemente
refratada ou refletida, ou, na verdade, afetada de qualquer forma.
Seria quase tão invisível quanto o são o gás de carbono ou o
hidrogênio no ar. E precisamente pela mesma razão!
— Sim — disse Kemp. — É indiscutível.
— E aqui está outro fato que você sabe que é verdadeiro.
Se uma folha de vidro for quebrada, Kemp, e reduzida a pó, fica
muito mais visível enquanto está no ar; transforma-se, finalmente,
em um pó branco e opaco. Isso é porque a pulverização multiplica
as superfícies do vidro onde ocorrem refrações e reflexões. Na
folha de vidro há apenas duas superfícies; no pó, a luz é refletida ou
refratada por cada grão que atravessa, e muito pouca atravessa
totalmente o pó. Mas se o vidro branco pulverizado é posto na
água, desaparece imediatamente. O vidro pulverizado e a água têm
índices de refração muito semelhante; isto é, a luz sofre muito
pouca refração ou reflexão, ao passar de uma para o outro.
— É possível tornar o vidro invisível colocando-o em um
líquido com quase o mesmo índice de refração; um objeto
transparente fica invisível se for colocado em qualquer meio com
um índice de refração quase igual. E, se pensar apenas um segundo,
verá também que o pó de vidro pode desaparecer no ar se seu
índices de refração muito semelhantes; isto é, a luz sofre muito
haverá refração ou reflexão, quando a luz passar do vidro para o ar.
— Sim, sim — concordou Kemp. — Mas um homem
não é feito de vidro em pó!
— Não — disse Griffin. — É mais transparente.
— Tolice!
— Ouvir isso de um médico! Como as pessoas se
esquecem! Já esqueceu sua física, em dez anos? Pense só em todas
as coisas que são transparentes e não parecem sê-lo. O papel, por
exemplo, é feito de fibras transparentes e é branco e opaco apenas
pela mesma razão que o vidro em pó é branco e opaco. Ponha óleo
em um papel branco, encha com óleo os interstícios entre as
partículas para que não haja mais refração ou reflexão nas
superfícies e ele fica transparente como o vidro. E não é só o papel,
mas a fibra de algodão, de linho, de lã, de madeira e de osso, Kemp,
a carne, Kemp, o cabelo, Kemp, as unhas e nervos, Kemp, na
verdade toda a matéria que compõe o homem, com exceção do
vermelho do sangue e do pigmento negro do cabelo, é feita de
tecido transparente e incolor. E só isso é suficiente para nos
tornarmos visíveis uns aos outros. Pois a maioria das fibras de um
ser vivo não são mais opacas do que a água.
— Céus — exclamou Kemp. — Naturalmente,
naturalmente! À noite passada estive pensando nas larvas marinhas
e na medusa!
— Agora entendeu! Estava com tudo isso na cabeça um
ano depois de ter deixado Londres — há seis anos. Mas guardei
comigo. Tinha que fazer meu trabalho com muitas desvantagens.
Oliver, meu professor, era um cientista pouco sério, jornalista por
instinto e um ladrão de idéias — estava sempre bisbilhotando.
Você conhece o sistema desonesto do mundo científico.
Simplesmente, não podia publicar minha descoberta e permitir que
ele partilhasse do crédito. Continuei a trabalhar. Fui chegando cada
vez mais perto de transformar minha fórmula em uma experiência,
uma realidade. Não falei com ninguém, porque pretendia desvendar
meu trabalho para o mundo com um efeito esmagador — e tornarme
famoso imediatamente. Dediquei-me ao estudo dos pigmentos,
para preencher certos lapsos. E, de repente, sem querer, por
acidente, fiz uma descoberta no campo da fisiologia.
— Sim?
— Você conhece a matéria que colore o sangue de
vermelho; pode ficar branca, incolor — e permanecer assim com
todas as funções que lhe são peculiares.
Kemp deu um grito de incredulidade e espanto.
O Homem Invisível levantou-se e começou a andar pelo
pequeno escritório. — Pode se admirar. Lembro-me daquela noite.
Era tarde — durante o dia sempre se era incomodado com
estudantes bobos e de boca aberta — e naquela época costumava
trabalhar até a madrugada. Tudo surgiu-me na mente, de súbito,
esplêndido e completo. Estava só. O laboratório permanecia
quieto, com as luzes brilhando silenciosa e intensamente no alto.
Em todos os meus momentos importantes, tenho estado só.
"Poder-se-ia fazer com que um animal, um tecido, fique
transparente! Poder-se-ia fazê-los invisíveis! Tudo, menos os
pigmentos. Eu poderia ser invisível!", pensei, compreendendo de
um golpe o que significaria ser um albino com tais conhecimentos.
Era avassalador. Larguei a filtragem de que estava me ocupando e
fui até a grande janela, de onde contemplei as estrelas. — Poderia
ser invisível! — repeti.
— Realizar um tal feito seria transcender a mágica. E
contemplei, sem a sombra da dúvida, uma visão magnífica do que
poderia significar a invisibilidade para um homem — o mistério, o
poder, a liberdade. Não via dificuldades. Só precisava pensar. E eu,
um instrutor mal vestido, pobre e enclausurado, ensinando asnos
em uma universidade provinciana, poderia me tornar, da noite para
o dia, isso. Pergunto-lhe, Kemp, se você... Digo-lhe que qualquer
um se teria atirado a essa pesquisa. Trabalhei três anos, e cada
montanha de dificuldades que conseguia vencer, mostrava, de seu
topo, mais outra. Os detalhes infinitos! E a irritação — um
professor, um professor de província, sempre espionando.
"Quando vai publicar esse seu trabalho?" — era sua eterna
pergunta. E os estudantes, a insuficiência de recursos! Tive três
anos disso...
— E após três anos de segredo e exasperação, descobri
que era impossível completar o trabalho — impossível.
— Por quê? — perguntou Kemp.
— Dinheiro — disse o Homem Invisível e foi de novo
olhar pela janela.
Bruscamente, voltou-se. — Roubei o velho.. . roubei meu
pai. O dinheiro não era dele e matou-se com um tiro.
20
NA CASA DE GREAT PORTLAND
STREET
Por um momento Kemp ficou calado, olhando fixamente
para as costas da figura sem cabeça, à janela. Estremeceu tomado
por um pensamento, levantou-se, pegou o braço do Homem
Invisível e fez com que se afastasse daquele ponto de observação.
— Você está cansado — disse — e enquanto estou
sentado, fica andando. Tome minha cadeira.
Colocou-se entre Griffin e a janela mais próxima.
Por algum tempo Griffin permaneceu sentado e em
silêncio e depois prosseguiu abruptamente:
— Quando isso aconteceu, já tinha saído da pequena casa
de Chesilstowe. Foi em dezembro passado. Tinha alugado um
quarto em Londres, enorme e sem móveis, em uma grande e malcuidada
hospedaria, de um bairro pobre perto de Great Portland
Street. Não tardou muito para que o quarto se enchesse de
aparelhos que tinha comprado com o dinheiro dele; o trabalho
progredia com regularidade e êxito, aproximando-se do fim. Sentiame
como um homem emergindo de um bosque cerrado
que, de repente, deparasse com uma tragédia sem sentido. Fui
sepultá-lo. Minha mente estava absorta na pesquisa e não ergui um
dedo para inocentá-lo. Lembro-me do funeral, do caixão barato, da
breve cerimônia, da colina ventosa e coberta de geada, e do velho
colega de colégio que leu o serviço fúnebre em sua intenção — um
velho andrajoso, escuro e curvo, com uma terrível coriza.
— Lembro-me também de voltar à casa vazia, andando
por um lugar que tinha sido uma aldeia e estava, naquela ocasião,
completamente demarcado e remexido por construtores baratos, à
feia semelhança de uma cidade. Por todos os lados os caminhos
estendiam-se até os campos profanados e terminavam em montes
de lixo e ervas daninhas, úmidas e malcheirosas. Recordo-me de
seguir pelo calçamento escorregadio e brilhante, uma silhueta
emaciada e sombria, e da estranha sensação de alheamento em
relação à respeitabilidade esquálida, ao sórdido comercialismo
daquele lugar.
— Não tive nem um pouco de pena de meu pai. Pareciame
que fora vítima do próprio sentimentalismo tolo. As
convenções correntes exigiam minha presença no enterro, mas
aquilo, realmente, nada tinha a ver comigo.
— Mas, seguindo a High Street, minha antiga vida
voltou-me à memória, pois encontrei a moça que conhecera fazia
dez anos. Nossos olhos se fitaram. Alguma coisa fez com que
voltasse e falasse com ela. Era uma pessoa extremamente banal.
— Aquela visita aos lugares do passado foi como um
sonho. Na ocasião, não me senti sozinho, nem senti que viera do
mundo para um lugar desolado. Tinha consciência de minha
indiferença, mas atribuí-a à vacuidade generalizada de todas as
coisas. Entrar novamente em meu quarto foi como recobrar a
realidade. Guardava objetos que conhecia e amava. Ali estavam os
aparelhos, as experiências organizadas e à espera. E, além do
planejamento dos detalhes, restavam muito poucas dificuldades.
— Mais cedo ou mais tarde, Kemp, vou revelar a você
toda a complexidade dos processos. Não precisamos falar nisso
agora. A maioria deles, a não ser por certos trechos que preferi
decorar, está escrita em código naqueles livros que o vagabundo
escondeu.
Precisamos encontrá-lo. Precisamos recuperar esses
livros. Mas a fase essencial era colocar o objeto transparente, cujo
índice de refração deveria ser reduzido entre dois núcleos de
irradiação de uma espécie de vibração etérea, da qual lhe falarei
minuciosamente mais tarde. Não, nada dessas vibrações Rontgen
— acho que aquelas a que me refiro ainda não são conhecidas. No
entanto, são bastante óbvias. Precisava de dois pequenos dínamos,
que fazia funcionar com um motor barato a gás. Minha primeira
experiência foi com um pedaço de tecido branco de lã. Foi a coisa
mais estranha do mundo observá-lo, branco e macio, no tremular
dos raios de luz, vê-lo ficar diáfano como um anel de fumaça e
depois desaparecer.
— Mal podia acreditar que o fizera. Estendi minhas mãos
para o vazio e ali estava a matéria, sólida como sempre. Tateei
cuidadosamente e joguei-a no chão. Tive certa dificuldade em
encontrá-la de novo.
— Então, houve uma experiência curiosa. Ouvi um
miado atrás de mim e voltando-me, vi um gato branco magro,
muito sujo, em cima da cobertura da caixa de água, do lado de fora
da janela. Tive uma idéia. "Está tudo pronto para você", disse, e fui
até a janela, abri-a e chamei brandamente. Ele entrou, ronronando.
O pobre animal estava morto de fome — e dei-lhe um pouco de
leite. Toda minha comida estava em um armário no canto do
quarto. Depois, ele continuou farejando — evidentemente com o
objetivo de se instalar com todo o conforto. O pano invisível
perturbou-o um pouco; você precisava ver como se eriçou! Mas
arranjei-lhe um lugar cômodo no travesseiro de minha cama de
rodízios. E dei-lhe manteiga, para induzi-lo a lavar-se.
— E você submeteu-o ao processo?
— Sim. Mas dar drogas a um gato não é brincadeira,
Kemp! E o processo falhou.
— Falhou!
— Em duas coisas. Havia as unhas e aquele pigmento —
qual é? — no fundo do olho de um gato. Sabe qual é?
— O tapetum.
— Sim, o tapetum. Não desapareceu. Depois que ministrei
a droga para descorar o sangue e fiz mais algumas coisas, dei ópio
ao animal e coloquei-o, junto com o travesseiro onde dormia, sobre
o aparelho. Mas, mesmo quando tudo tornou-se impreciso,
acabando por sumir, ainda ficaram os dois pequenos espectros dos
olhos dele.
— Estranho!
— Não sei como explicar. Claro que estava enfaixado e
preso — portanto, seguro; mas acordou ainda indistinto e miou
horrivelmente; alguém veio bater à porta. Era uma mulher esquisita
que vivia no andar de baixo e que desconfiava que eu fazia
vivissecções — uma pobre velha, encharcada de bebida, que só
tinha no mundo um gato branco para amar. Molhei uma gaze com
clorofórmio, apliquei-a no gato e atendi a porta. "Será que ouvi um
gato?", perguntou. "O meu gato?" "Aqui não", respondi, muito
polidamente. Ela ficou um pouco hesitante e tentou olhar para o
quarto atrás de mim, que, sem dúvida, lhe parecia bastante
estranho, naturalmente — paredes nuas, janelas sem cortinas, cama
de rodízios, o motor a gás vibrando, os reflexos dos pontos
luminosos e aquele leve e desagradável odor de clorofórmio no ar.
Afinal teve que desistir e foi embora.
— Quanto tempo levou? — perguntou Kemp.
— Três ou quatro horas para o gato. Os ossos, tendões e
gorduras foram os últimos a sumir, bem como as pontas mais
escuras dos pêlos. E, como disse, o fundo dos olhos que, embora
iridescentes, não desapareciam.
— A noite tinha caído quando terminou e não se podia
ver nada além dos olhos empanados e as unhas. Desliguei o motor
a gás, tateei e acariciei o gato que ainda estava insensível e depois,
cansado, deixei-o dormindo no travesseiro invisível e fui para a
cama. Tive dificuldade em conciliar o sono. Fiquei acordado,
pensando em disparates vazios e sem objetivo, repetindo
mentalmente a experiência, muitas e muitas vezes, ou sonhando,
febril, com coisas que se tornavam vagas e desapareciam junto de
mim, até que tudo, inclusive o chão que me sustentava, deixou de
existir e tive um daqueles pesadelos angustiantes em que se está
caindo, que às vezes ocorrem. Por volta das duas horas, o gato
começou a miar pelo quarto. Tentei silenciá-lo, falando com ele e
depois resolvi pô-lo para fora. Lembro-me do choque que sofri
quando estava acendendo a luz — só havia os olhos redondos, de
um verde brilhante — e nada em torno deles. Teria lhe dado leite,
mas não havia mais nenhum. O animal não ficava quieto, sentavase
e miava para a porta. Tentei agarrá-lo, pensando em fazê-lo sair
pela janela, mas não se deixava apanhar, desaparecia. Então
começou a miar pelo quarto, em lugares diferentes. Finalmente abri
a janela e fiz um movimento brusco. Suponho que acabou por ir
embora. Nunca mais o vi.
— Então, só Deus sabe por quê, comecei a pensar no
enterro de meu pai e na colina desolada e ventosa, até o raiar do
dia. Concluí que era impossível dormir e saí, fechando a porta, para
vaguear pelas ruas adormecidas.
— Você não está dizendo que existe um gato invisível
por aí! — duvidou Kemp.
— Se não foi morto — confirmou o Homem Invisível.
— Por que não?
— Por que não? — ecoou Kemp. — Não quis
interromper.
— Muito provavelmente foi morto — continuou o
Homem Invisível. — Sei que estava vivo quatro dias depois, em um
bueiro em Great Titchfield Street; vi uma multidão em volta dele,
tentando saber de onde vinham os miados.
Calou-se por quase um minuto. Depois prosseguiu.
— Lembro-me nitidamente da manhã antes da
transformação. Devia ter subido a Great Portland Street. Recordo o
quartel em Albany Street e os soldados saindo a cavalo; e, afinal, vime
sentado ao sol, sentindo-me muito mal e estranho, no alto de
Primrose Hill. Era um dia de sol em janeiro — um desses dias
ensolarados e gélidos que tivemos antes da neve, este ano. Meu
cérebro cansado tentava equacionar a situação, a fim de concatenar
um plano a ser seguido.
— Fiquei surpreso ao descobrir como me parecia fútil
atingir a vitória, quando já a tinha ao meu alcance. Na verdade,
estava esgotado; a extrema tensão de um trabalho contínuo de
quase quatro anos tinha me deixado incapaz de qualquer emoção
positiva. Sentia-me apático e tentei inutilmente recobrar o
entusiasmo das pesquisas iniciais, a paixão pela descoberta que me
levara a ignorar a desgraça que iria se abater sobre os cabelos
brancos de meu pai. Nada parecia importar. Percebi, com muita
lucidez, que aquele era um estado de espírito transitório, devido ao
excesso de trabalho e falta de sono e que, com remédios ou
repouso poderia recobrar minhas forças.
— A única coisa em que conseguia pensar claramente era
que aquilo devia ser levado a cabo; essa idéia fixa me dominava. E
tinha que ser logo, pois meu dinheiro estava quase no fim.
Contemplei a colina, com crianças brincando e moças cuidando
delas e procurei pensar em todas as fantásticas vantagens que um
homem invisível teria no mundo. Depois de algum tempo arrasteime
para casa, comi um pouco, tomei uma dose forte de estricnina e
adormeci vestido na cama que não fora desfeita. A estricnina é um
tônico maravilhoso para vencer a fraqueza de um homem, Kemp.
— É o diabo — disse Kemp. — A idade da pedra
concentrada em uma garrafa.
— Acordei completamente revigorado e bastante
irritadiço. Você sabe, não é?
— Conheço a droga.
— E havia alguém batendo à porta. Era meu senhorio
com ameaças e perguntas, um velho judeu polonês de casaco
cinzento comprido e chinelos sebosos. Tinha a certeza de que eu
andara torturando um gato durante a noite — a velha dera com a
língua nos dentes. Insistia em apurar os fatos. As leis do país contra
a vivissecção eram muito severas — ele poderia ser
responsabilizado. Neguei o gato. Mas sentia-se a vibração do
pequeno motor a gás por toda a casa, objetou ele. Aquilo,
realmente, era verdade. Esgueirou-se, passando por mim e entrou
no quarto, examinando-o por cima dos óculos alemães de armação
de prata e, de repente, temi que pudesse divulgar um pouco do meu
segredo. Tentei colocar-me entre ele e o aparelho sintetizador que
tinha montado e isso apenas aguçou-lhe a curiosidade. Que estava
fazendo? Por que me mantinha sempre isolado e misterioso? Era
legal? Perigoso? Eu não pagava senão o aluguel de praxe. A casa
dele sempre fora extremamente respeitável em uma vizinhança malafamada.
Subitamente, perdi a paciência. Disse-lhe que saísse. Ele
começou a protestar, a papaguear sobre seu direito de entrar. Em
um instante peguei-o pela gola; alguma coisa rasgou-se e ele foi
projetado, rodopiando, para o corredor. Bati a porta, tranquei-a e
sentei-me, tremendo.
O sujeito do lado de fora criou um rebuliço a que não dei
atenção e após algum tempo foi embora.
— Mas isso gerou uma crise em torno do caso. Não sabia
o que ele faria, e nem mesmo o que teria o direito de fazer. Mudar
para outro apartamento implicaria em atraso; restavam-me no
mundo apenas vinte libras — a maior parte em um banco — e não
podia dar-me a esse luxo. Desaparecer! A idéia era irresistível. Mas
haveria um inquérito, a pilhagem de meu quarto. . .
— Ao pensar na possibilidade da revelação de meu
trabalho ou de sua interrupção, agora que chegara ao auge, fiquei
enfurecido e ativo. Saí apressadamente com meus três livros de
anotações e meu talão de cheques — o vagabundo está com eles
agora — e despachei-os da agência dos Correios mais próxima para
uma posta-restante para cartas e volumes em Great Portland Street.
Tentei sair sem fazer barulho. Ao voltar, encontrei meu senhorio
subindo as escadas silenciosamente; ouvira a porta fechar-se, creio.
Você teria rido se o visse pular para o lado do patamar da escada,
quando corri atrás dele. Fulminou-me com o olhar quando o
ultrapassei, e fiz a casa toda tremer quando bati a porta. Ouvi-o
chegar, arrastando os pés, hesitar e descer. Imediatamente pus-me a
trabalhar em minhas fórmulas.
— Fiz tudo naquela tarde e noite. Enquanto ainda estava
sentado, sob o efeito enjoativo e entorpecente das drogas que
descolorem o sangue, bateram insistentemente na porta. Pararam,
ouvi passos que se afastavam e voltavam e as batidas recomeçaram.
Houve uma tentativa de enfiar alguma coisa por baixo da porta —
um papel azul. Então, em um acesso de cólera, levantei-me,
escancarei a porta com violência e perguntei: — Que é agora?
— Era meu senhorio, com uma intimação de despejo, ou
coisa semelhante. Estendeu-a para mim, acho que viu algo esquisito
em minhas mãos e ergueu os olhos para meu rosto.
— Por um instante, ficou de boca aberta. Depois, deu
uma espécie de grito surdo, deixou cair a vela e a intimação e fugiu
aos tropeções, pelo corredor escuro até as escadas. Fechei e
tranquei a porta e fui até o espelho. Ali, entendi o pânico do
homem. Meu rosto estava branco como uma pedra-mármore.
— Tudo foi horrível. Não tinha contado com tanto
sofrimento. Uma noite de suplício, enjôo e desmaios. Cerrei os
dentes, embora minha pele estivesse em fogo; todo o meu corpo
estava em fogo; mas resisti com unhas e dentes. Compreendi então
porque o gato tinha miado tanto até que lhe aplicasse o
clorofórmio. Por sorte vivia só em meu quarto, sem ninguém que
zelasse por mim. Houve ocasiões em que soluçava, gemia e me
lamentava. Mas resisti. Tornei-me insensível e acordei debilitado,
no escuro.
— A dor passara. Achei que estava me suicidando, mas
pouco me importava. Nunca esquecerei daquela madrugada, do
estranho terror de ver que minhas mãos pareciam feitas de vidro
opaco ao observá-las enquanto iam ficando cada vez mais límpidas
e transparentes com o correr do dia, até que, finalmente, tornou-se
possível ver através delas a incrível desordem de meu quarto,
mesmo que fechasse minhas pálpebras, também transparentes.
Braços e pernas foram ficando vítreos, os ossos e artérias tornaramse
imprecisos e desapareceram e os pequenos nervos
esbranquiçados foram os últimos a sumir. Rilhei os dentes e
agüentei até o fim, quando só permaneceram as pontas mortas de
minhas unhas, descoradas e lívidas e a mancha castanha de algum
tipo de ácido em meus dedos.
— Lutei para levantar-me. A princípio senti-me tão
incapaz quanto um bebê de cueiros — tentando pôr-me de pé com
membros que não podia ver. Estava fraco e com muita fome. Fui
até ao espelho em que me barbeava e olhei para o nada, a não ser
por um pigmento atenuado que ainda restava por trás da retina de
meus olhos, mais tênue do que uma névoa. Tive que apoiar-me na
mesa e encostar a testa de encontro ao espelho.
— Só um apelo desesperado a toda minha força de
vontade arrastou-me de volta à aparelhagem, para completar o
processo.
— Dormi a manhã toda, cobrindo os olhos com o lençol
para defender-me da claridade e, por volta de meio-dia, fui
novamente acordado por uma batida na porta. Tinha recobrado
minhas forças. Ergui-me, atento e ouvi um sussurro. Pus-me de pé,
em um salto e, tão silenciosamente quanto possível, comecei a
desmontar as ligações de meu aparelho e a espalhá-las pelo quarto,
de forma a destruir qualquer sugestão de uma montagem correta.
Um pouco depois bateram de novo e chamaram, primeiro a voz do
senhorio e a seguir mais duas. Para ganhar tempo, respondi. Peguei
o pano e o travesseiro invisíveis e joguei-os fora, em cima da tampa
da caixa de água. Quando abri a janela, ouvi um estrondo à porta.
Alguém a tinha forçado, com a intenção de quebrar a fechadura.
Mas os trincos resistentes que tinha colocado alguns dias antes,
detiveram-no. Aquilo me sobressaltou e enfureceu. Comecei a
tremer e a fazer as coisas apressadamente.
— Juntei no meio do quarto algumas folhas soltas de
papel, palha, papel de embrulho e coisas assim e abri o gás. A porta
começou a ser castigada por golpes cada vez mais violentos. Não
encontrava os fósforos. A raiva fazia-me socar as paredes. Fechei
novamente o gás, saí pela janela para a tampa da caixa de água,
baixei cuidadosamente a janela de guilhotina e sentei-me para ver o
que acontecia, invisível e seguro, mas trêmulo de ódio. Vi que
tinham rebentado um painel da porta, em seguida quebrado os
encaixes das lingüetas das fechaduras e estavam no umbral da porta
aberta. Eram o senhorio e seus enteados, dois rapazes fortes de
vinte e três ou vinte e quatro anos. Atrás deles agitava-se a velhota
do andar térreo.
— Pode imaginar seu espanto ao encontrarem o quarto
vazio. Um dos jovens correu imediatamente para a janela, abriu-a e
olhou para fora. Seus olhos parados e o rosto barbado de lábios
grossos chegaram a centímetros de meu rosto. Tive vontade de
socar aquela cara idiota, mas contive meu punho fechado. Ele
olhou através de mim. O mesmo fizeram os outros que se
acercaram dele. O velho foi olhar embaixo da cama e depois todos
se precipitaram para o armário. Discutiram longamente sobre os
fatos em iídiche e em dialeto de Londres. Concluíram que eu não
lhes tinha respondido e que a imaginação os enganara. Uma
sensação de euforia extraordinária substituiu minha ira enquanto os
observava sentado do lado de fora, quatro pessoas — pois a velha
também entrara e olhava à sua volta tão desconfiada quanto um
gato, tentando compreender o enigma de meu comportamento.
— O velho, até onde podia entender seu dialeto,
concordava com a mulher que eu era um vivisseccionista. Os filhos
protestavam, em um inglês vulgar, afirmando que era eletricista,
baseados nos dínamos e caloríferos. Todos receavam que eu
chegasse, embora mais tarde tivesse descoberto que haviam
trancado a porta de entrada. A velha deu uma espiadela no armário
e embaixo da: cama e um dos jovens empurrou o registro e
examinou a chaminé. Um dos outros hóspedes, um verdureiro
ambulante que dividia o quarto em frente com um açougueiro,
apareceu no patamar, foi convidado a entrar e disse coisas
incoerentes.
— Ocorreu-me que, se os aparelhos de aquecimento
caíssem nas mãos de uma pessoa arguta e instruída revelariam
muito do meu trabalho e aproveitando uma oportunidade, entrei no
quarto e entortei um dos pequenos dínamos em relação ao outro
no qual se apoiava, quebrando ambos os aparelhos. Então,
enquanto eles tentavam explicar por que tinham se quebrado,
esgueirei-me para fora do quarto e desci sem fazer barulho.
— Entrei em uma das salas e esperei até que descessem
também, ainda especulando e discutindo, todos um tanto
desapontados por não terem encontrado "horrores" e um pouco
confusos quanto à posição assumida em relação a mim. Então subi
de novo com uma caixa de fósforos, pus fogo no monte de papel e
lixo, coloquei as cadeiras e roupa de cama junto dele, dirigi o gás
para tudo aquilo por meio de um tubo de borracha e, dando adeus
ao quarto, deixei-o pela última vez.
— Você incendiou a casa! — exclamou Kemp.
— Incendiei a casa. Era a única forma de encobrir minha
trilha — e, sem dúvida, estava no seguro. Abri cuidadosamente os
trincos da porta da frente e saí para a rua. Estava invisível e apenas
começava a compreender a enorme vantagem que a invisibilidade
me dava. Minha cabeça já estava fervilhando com planos de todas
as coisas loucas e maravilhosas que poderia fazer impunemente.
21
EM OXFORD STREET
— Ao descer as escadas pela primeira vez, deparei com
uma dificuldade inesperada, porque não via meus pés; na verdade,
tropecei duas vezes e foi com uma falta de jeito que não me era
habitual que segurei o ferrolho. No entanto, consegui andar
razoavelmente bem no piso plano, tomando cuidado para não olhar
para baixo.
— Devo dizer que meu estado de espírito era o de
euforia. Sentia-me como um homem que, com os pés acolchoados
e roupas que não farfalhavam, enxergasse em uma cidade de cegos.
Tive um impulso louco de brincar, de assombrar as pessoas, de
bater nas costas dos homens, de jogar para longe seus chapéus e de
divertir-me de um modo geral com minha extraordinária
prerrogativa.
— Mas mal chegara a Great Portland Street (a casa onde
me hospedava era perto de uma grande loja de fazendas naquela
rua), quando ouvi o estrondo de uma batida e fui atingido
violentamente por trás; voltando-me, vi um homem que carregava
uma cesta de sifões de soda, olhando atônito o seu fardo. Embora
o golpe tivesse me machucado realmente, achei o espanto dele tão
irresistível que ri alto. "O diabo está na cesta", disse eu, e puxei-a
bruscamente da mão dele. Soltou-a, incontinenti e balancei toda a
carga no ar.
— Mas o idiota de um cocheiro que estava parado em
frente a um botequim correu para apanhá-la e seus dedos
estendidos acertaram-me abaixo da orelha com uma força
insuportável. Deixei cair tudo com uma pancada no cocheiro e só
depois, com o barulho de pés perto de mim, gente saindo das lojas
e veículos parando, é que entendi o que tinha feito a mim mesmo;
maldizendo minha estupidez, recuei até uma vitrine e preparei-me
para fugir àquela confusão. Não tardaria muito para que fosse
cercado pela multidão e fatalmente descoberto. Empurrei o
ajudante do açougue que, para minha sorte, nem se voltou para
investigar o nada que o havia empurrado para o lado e refugiei-me
atrás da carruagem do cocheiro. Não sei como explicaram os fatos.
Apressei-me a atravessar a rua que, felizmente, estava desimpedida;
e, mal prestando atenção ao caminho que tomava, por causa do
incidente que me despertara o medo de ser descoberto, mergulhei
no congestionamento vespertino de Oxford Street.
— Tentei incorporar-me à corrente de pessoas, mas
estava muito compacta e não demorou para que pisassem meus
calcanhares. Desci para a sarjeta, cuja aspereza era dolorosa para
meus pés e logo o varal de um cabriolé vagaroso pressionou-me
com força a omoplata, lembrando-me de que já estava muito
machucado. Cambaleante, saí do caminho do veículo, driblei um
carrinho de criança com um movimento convulsivo e fui parar
atrás do cabriolé. Salvou-me uma inspiração feliz e segui em sua
esteira enquanto este avançava devagar, trêmulo e assustado com o
desfecho de minha aventura. E não apenas trêmulo, mas batendo
os dentes. Era um dia claro de janeiro, minha nudez era total, e a
camada escorregadia de lama que cobria o chão estava gelada. Por
mais tolo que me pareça agora, não tinha pensado que, transparente
ou não, ainda estava sujeito ao tempo e a todas as suas variações.
— Subitamente, ocorreu-me uma idéia luminosa.
Circundei o cabriolé e subi. Assim, tintando, amedrontado,
espirrando com os primeiros sinais de um resfriado e começando a
sentir as contusões e minhas costas, desci lentamente Oxford
Street, deixando para trás Tottenham Court Road. Pode-se
imaginar como meu estado de espírito era diferente daquele com
que tinha saído fazia dez minutos. Aquela invisibilidade era demais!
Um só pensamento me dominava — como livrar-me da enrascada
em que estava metido.
— Passamos devagar por Mudie e ali uma mulher alta,
com cinco ou seis livros de etiquetas amarelas, fez sinal para o meu
cabriolé e mal tive tempo de pular fora para fugir a ela, escapando
por pouco de um vagão ferroviário, em minha precipitação. Tomei
o caminho de Bloomsbury Square, pretendendo, passado o Museu,
dirigir-me para o norte, para o distrito mais calmo. Estava
dolorosamente enregelado e a estranheza de minha situação
acovardava-me tanto que choramingava ao correr. No canto norte
da praça um cachorrinho branco saiu da sede da Sociedade
Farmacêutica e correu imediatamente para mim, farejando.
— Nunca tinha pensado nisso antes, mas o nariz está
para a mente de um cão, como os olhos para a mente de um
homem que vê. Os cães sentem o cheiro de um homem em
movimento, como os homens registram sua aparência. O animal
começou a latir e pular, demonstrando claramente, ao que me
parecia, perceber minha presença. Atravessei Great Russell Street
relanceando para trás por cima do ombro e segui um pouco por
Montague Street, antes de perceber para onde estava correndo.
— Então ouvi um clamor de música e, olhando rua
abaixo, vi um grupo de pessoas que vinham de Russell Square, de
camisas vermelhas e empunhando a bandeira do Exército da
Salvação. Não podia alimentar a esperança de varar tal multidão
que cantava pelo caminho, batendo com os pés no chão e, temendo
voltar, afastando-me novamente de casa, decidi impulsivamente;
subi correndo os degraus brancos de uma casa em frente às grades
do Museu e fiquei ali até que a multidão pudesse passar.
Felizmente, o cão parou, ao ouvir o barulho da música, hesitou, deu
meia-volta e correu de novo para Bloomsbury Square.
— A banda continuou a se aproximar cantando, com
uma ironia inconsciente, um hino que dizia: "Quando verei seu
rosto?" e a corrente da multidão pareceu levar um tempo infinito a
passar pela rua diante de mim. O tambor soava bum, bum, bum,
com uma ressonância vibrante e, momentaneamente, não me
apercebi de dois garotos parados em frente às grades, a meu lado.
"Veja aquilo", disse um. "Aquilo o quê?", perguntou o outro. "Ora,
aquelas marcas de pé, descalças. Como as que se faz na lama."
— Olhei para baixo e vi que os garotos tinham parado e
estavam olhando, de boca aberta, as pegadas sujas de lama que
deixara, ao subir os degraus recentemente cobertos de neve. Os
passantes acotovelavam-nos e empurravam-nos, mas a maldita
inteligência deles fora despertada. "Bum, bum, bum. Quando,
bum.. veremos, bum, seu rosto, bum, bum." "Um homem descalço
subiu esses degraus, ou não entendo de nada", disse um deles "E
não desceu. E o pé dele estava sangrando."
— O grosso da multidão já tinha passado. "Olhe aqui,
Ted", falou o mais jovem dos detetives, com a vivacidade da
surpresa em sua voz, e apontou diretamente para meus pés. Olhei
também e vi logo a sugestão imprecisa de seus contornos calcados
nos salpicos de lama. Por um instante, fiquei paralisado.
— "Ora, isso é esquisito", disse o mais velho. "Danado
de esquisito! Parece até o fantasma de um pé, não acha?" Hesitou e
avançou, com a mão estendida. Um homem, e depois uma moça,
pararam bruscamente para ver o que estava apanhando. Faltava
pouco para que me tocasse. Então vi o que tinha a fazer. Dei um
passo, o menino pulou para trás com uma exclamação e, com um
movimento rápido, passei para o pórtico da casa vizinha. Mas o
menino menor tinha a vista suficientemente apurada para seguir
esse movimento e, antes que tivesse descido todos os degraus para
chegar à calçada, recobrou-se do espanto momentâneo e começou
a gritar que os pés tinham passado por cima do muro.
— Deram a volta apressadamente e viram minhas novas
pegadas materializarem-se sobre o último degrau e a calçada. "Que
está acontecendo?", perguntou alguém. "Pés! Vejam! Pés
correndo!" Com exceção de meus três perseguidores, todas as
pessoas na rua acompanhavam o Exército da Salvação, e isso não
era um obstáculo apenas para mim, mas para eles também. Houve
um tumulto, cheio de surpresas e interrogações. Consegui passar,
embora tivesse que derrubar um jovem e, logo em seguida, vi-me
correndo em volta de Russell Square, com seis ou sete sujeitos
assombrados seguindo as marcas de meus pés. Não havia tempo
para explicações, ou toda aquela gente viria atrás de mim.
— Dobrei esquinas duas vezes, atravessei a rua três e
voltei atrás e então, enquanto meus pés ficavam quentes e secos, as
impressões úmidas começaram a desaparecer. Afinal podia respirar
e esfreguei os pés com as mãos para limpá-los e assim consegui
escapar. A última coisa que vi da perseguição foi um pequeno
grupo, talvez uma dúzia de pessoas, examinando com infinita
perplexidade a impressão de um pé que secava lentamente e saíra
de uma poça em Tavistock Square — uma pegada tão solitária e
incompreensível para eles quanto a descoberta isolada de Crusoé
— Toda aquela correria tinha me aquecido até certo
ponto e prossegui mais animado pelo labirinto dos caminhos pouco
freqüentados que existem nas cercanias. Minhas costas estavam
ficando mais rígidas e doloridas, minhas amígdalas tinham sido
machucadas pelos dedos do cocheiro e a pele de meu pescoço fora
arranhada pelas unhas dele; os pés doíam demais, e um pequeno
corte em um deles fazia-me coxear. Em tempo, vi um cego que se
aproximava e fugi capengando, pois temia sua intuição sutil. Uma
ou duas vezes ocorreram colisões acidentais e deixava as pessoas
pasmas com vários xingamentos inexplicáveis tinindo em seus
ouvidos. Depois senti algo silencioso e macio de encontro a meu
rosto e toda a praça foi coberta por um véu de flocos de neve que
caíam devagar. Tinha apanhado um resfriado e, por mais que
fizesse, não podia evitar um espirro ocasional. E cada cão que
surgia, com o nariz em riste e o farejar curioso, era um terror para
mim.
— Logo apareceram homens e garotos correndo,
primeiro um, depois outros, gritando enquanto corriam. Era um
incêndio.
Apressavam-se na direção de minha hospedaria e,
olhando para trás por uma das ruas, vi um rolo compacto de
fumaça negra que subia, ultrapassando os telhados e fios
telefônicos. Eram meus aposentos que estavam em fogo; minhas
roupas, aparelhos, todos os meus recursos estavam ali, exceto o
talão de cheques e os três volumes de anotações que me esperavam
em Great Portland Street. Ardendo! Se jamais um homem queimou
seus barcos, este homem fui eu.
O Homem Invisível calou-se e entregou-se a seus
pensamentos. Kemp relanceou nervosamente para fora, através da
janela. — Sim — disse ele. — Continue.
22
NA LOJA DE DEPARTAMENTOS
— Assim, em janeiro passado, com a ameaça de uma
tempestade de neve no ar — e se a neve caísse sobre mim seria
traído! — cansado, com frio, dolorido, terrivelmente infeliz e sem
estar ainda totalmente convencido de meu estado de invisibilidade,
comecei essa vida nova à qual estou condenado. Não tinha refúgio,
instrumentos, nenhum ser humano no mundo em quem pudesse
confiar. Contar meu segredo iria denunciar-me — fazer de mim um
simples espetáculo e uma curiosidade. Mesmo assim, tinha vontade
de abordar algum passante e colocar-me à sua mercê. Mas conhecia,
sem sombra de dúvida, o terror e a crueldade brutal que minha
tentativa de comunicação despertaria. Não fiz planos na rua. Meu
único objetivo era abrigar-me da neve, vestir-me e aquecer-me; só
então poderia ter esperança de planejar alguma coisa. Mas até para
mim, um Homem Invisível, as fileiras de casas de Londres
permaneciam fechadas, barradas e impenetravelmente trancadas.
— Só podia ver uma coisa com clareza diante de mim: a
exposição ao frio e o tormento da nevasca e da noite.
— Então, tive uma idéia brilhante. Tomei uma das
passagens que levam de Gower Street e Tottenham Court Road e
achei-me diante do "Omniums", o grande estabelecimento onde se
pode comprar tudo — você conhece o lugar — carne, gêneros
alimentícios, lençóis, toalhas, móveis, roupas e até quadros a óleo
— um enorme labirinto de lojas, em uma só. Pensei que
encontraria as portas abertas, mas estavam fechadas; porém,
enquanto ainda estava parado na ampla entrada, vi uma carruagem
frear e um homem uniformizado — você já viu o tipo de
personagem com "Omnium" no boné — abriu a porta. Consegui
entrar e andando pela loja — era uma seção onde vendiam fitas,
luvas e meias, coisas assim — e cheguei a um local mais espaçoso,
especializado em cestas de piquenique e móveis de vime.
— Não me sentia em segurança ali; havia gente andando
de um lado para outro e perambulei nervosamente pelas cercanias
até que cheguei a um vasto departamento, no andar superior, que
expunha centenas de camas e atrás delas encontrei finalmente um
lugar para repousar, no meio de uma pilha alta de colchões
dobrados, cheios de flocos de lã. O lugar já estava iluminado e
agradavelmente aquecido e resolvi ficar, vigiando cautelosamente
dois ou três grupos de vendedores e clientes que vagavam pelo
lugar até que chegasse a hora de fechar. Então poderia, pensei,
roubar comida e roupas do lugar e, disfarçado, percorrê-lo para
examinar-lhe os recursos e talvez dormir em alguma cama. Aquele
parecia-me um plano sensato. Minha intenção era arranjar roupas
para tornar-me uma figura embuçada mas aceitável, pegar dinheiro
e recuperar meus livros e volumes onde esperavam por mim,
hospedar-me em algum lugar e elaborar planos para desfrutar ao
máximo das vantagens que a invisibilidade me conferia (como ainda
pensava) sobre meus semelhantes.
— A hora de fechar chegou rapidamente; não podia ter
passado mais de uma hora depois que me acomodei nos colchões,
quando vi que as persianas das janelas estavam sendo abaixadas e
os clientes dirigiam-se para a porta. Então, um contingente de
jovens ativos começou a arrumar as mercadorias que tinham ficado
fora dos lugares, com uma vivacidade notável. Deixei meu abrigo
quando a aglomeração diminuiu e andei cautelosamente pelos
setores menos desertos da loja. Estava verdadeiramente surpreso ao
observar com que rapidez os jovens, homens e mulheres, retiravam
as mercadorias que tinham ficado em exposição para venda,
durante o dia todo. Todas as caixas de artigos diversos, os cortes de
fazenda, as cascatas de rendas, as caixas de bombons na seção de
alimentos, as amostras de uma coisa e outra eram apanhadas,
dobradas, jogadas em minúsculos receptáculos e tudo quanto não
podia ser descido e guardado, era coberto por panos de um material
grosseiro como aniagem. Finalmente, todas as cadeiras foram
colocadas nos balcões, de pés para cima, deixando o piso
desembaraçado. Logo que cada um dos jovens terminava sua tarefa,
ele ou ela dirigia-se prontamente para a porta, com uma expressão
animada que poucas vezes já vira em um empregado de loja.
Depois chegaram muitos outros moços espalhando serragem e
carregando baldes e vassouras. Tive que sair depressa do caminho
deles e foi assim que um pouco de serragem agarrou-se a meu
tornozelo. Durante algum tempo, vagando pelas seções escurecidas
e cobertas de serragem, ouvi as vassouras trabalhando. E, enfim,
após uma boa hora ou mais, depois da loja fechada, veio o barulho
de portas sendo trancadas. O silêncio desceu e vi-me andando
sozinho pelo enorme emaranhado de lojas, galerias e salões de
exposição. Estava muito quieto; em um dos lugares, lembro-me de
ter passado perto de uma das entradas de Tottenham Court Road e
de ter ficado ouvindo o barulho das botas dos passantes.
— Minha primeira visita foi ao lugar onde vira meias e
luvas para vender. Estava escuro e procurei fósforos como o diabo;
encontrei-os, enfim, na gaveta da mesa onde ficavam pequenas
quantias. Depois tive que arranjar uma vela. Fui obrigado a retirar
os panos protetores e examinar inúmeras caixas e gavetas, mas
acabei por encontrar o que procurava; a etiqueta da caixa dizia:
"calças e coletes de lã de carneiro". Em seguida meias, uma echarpe
grossa e passei para a seção de roupas e apanhei calças, um paletó
esportivo, um sobretudo e um chapéu de feltro macio — uma
espécie de chapéu clerical, com a aba voltada para baixo. Comecei a
sentir-me novamente um ser humano e meu próximo pensamento
foi a comida.
— No andar superior havia um setor com uma
lanchonete e ali consegui frios. O bule ainda tinha café e acendi o
gás para aquecê-lo mais um pouco. Não passei nada mal. Depois,
andando pelo pavimento à procura de cobertores — tive que me
contentar com um monte de acolchoados de penas — descobri um
departamento de alimentos, com muito chocolate e frutas
cristalizadas — mais do que era de fato bom para mim — e umas
garrafas de borgonha branco. Próximo, havia uma seção de
brinquedos e tive uma idéia brilhante. Achei alguns narizes
artificiais — sabe, narizes postiços e pensei em óculos escuros. Mas
no "Omniums" não havia um setor de ótica. Meu nariz tinha,
realmente, sido difícil e já havia pensado em pintura. Mas a
descoberta pôs minha mente a funcionar avaliando perucas,
máscaras e coisas semelhantes. Acabei por adormecer em um
monte de acolchoados de penas, muito quentes e confortáveis.
— Meus últimos pensamentos, antes de adormecer,
foram os mais agradáveis que já tivera antes da mudança. Estava
em um estado de serenidade física e isso refletia-se em minha
mente. Achava que poderia sair de manhã sem ser observado,
vestido com minhas roupas e escondendo meu rosto com uma
echarpe branca que apanhara, para comprar, com o dinheiro que
encontrara, óculos e o mais, completando assim o meu disfarce. Caí
em um sono perturbado, no qual figuravam todas as coisas
fantásticas que haviam acontecido nos poucos dias mais recentes.
Vi o senhorio, aquele pequeno judeu feio, vociferando em seus
aposentos; vi seus dois filhos espantados e a cara enrugada e
contorcida da velha que perguntava pelo gato. Experimentei
novamente a sensação de ver o pano desaparecer e cheguei até a
colina ventosa e o velho pastor espirrando e resmungando: "O pó
reverte ao pó e a terra à terra", e o túmulo aberto de meu pai.
— "Você também", disse uma voz e de repente comecei
a ser empurrado para a sepultura. Lutei, gritei, apelei para os que
assistiam ao serviço fúnebre, mas continuaram, impassíveis, a seguir
o ritual; o velho pastor não parava de orar e espirrar durante todo o
serviço. Compreendi que estava invisível e inaudível e forças
superiores tinham se apossado de mim. Lutava em vão, fui
empurrado para dentro, o caixão soou ocamente quando caí por
cima dele e a terra começou a descer sobre mim jogada pelas pás.
Ninguém me prestava atenção, ninguém se apercebia de mim.
Reagi convulsivamente e acordei.
— A pálida aurora de Londres despontara e o lugar
estava banhado por uma luz fria e cinzenta que se filtrava através
dos espaços das persianas das janelas. Sentei-me e por algum tempo
não consegui lembrar-me onde poderia ser aquele apartamento
amplo com seus balcões, pilhas de material enrolado, montes de
acolchoados, almofadas e colunas de ferro. Então, quando comecei
a me lembrar, ouvi vozes que conversavam.
— Num ponto distante, na luz mais clara de algum setor
onde as persianas já haviam sido levantadas, vi que dois homens se
aproximavam. Pus-me de pé em um salto, olhando a meu redor à
procura de alguma rota de fuga e, ao fazê-lo, o som de meu
movimento chamou a atenção deles sobre mim. Suponho que
viram apenas uma silhueta que se afastava rápida e silenciosamente.
"Quem é?", gritou um, e o outro, "pare aí". Precipitei-me para
contornar um canto e dei em cheio — um corpo sem rosto, veja
bem! — com um rapazola magro de uns quinze anos. Ele berrou,
eu o derrubei, passei correndo por ele, virei outra esquina e, por
uma inspiração feliz, joguei-me atrás de um balcão onde fiquei
esticado no assoalho. Não tardou para que outros pés passassem
voando por mim e ouvi vozes gritando: "Todos para as portas!",
perguntando o que estava acontecendo e trocando opiniões sobre a
maneira de me apanhar.
— Deitado no chão, sentia-me alucinado de medo. Mas,
por mais estranho que pareça, não me ocorreu naquele momento,
tirar as roupas, que era o que deveria ter feito. Acho que tinha me
decidido a fugir vestido com elas e isso me obcecava. Foi então
que, do corredor formado pela parte interna dos balcões, veio o
grito: "Aqui está ele!"
— Pus-me de pé, peguei uma cadeira em cima do balcão
e atirei-a com força no idiota que tinha gritado, voltei-me, encontrei
outro dobrando mais um canto, atirei-o longe e precipitei-me
escadas acima. Este manteve a calma, soltou um "Olá!" e subiu as
escadas em minha perseguição. No alto das escadas estava
empilhada uma porção desses potes coloridos — como se
chamam?
— Cerâmicas artísticas — sugeriu Kemp.
— Isso mesmo! Cerâmicas artísticas. Bem, voltei-me no
último degrau, peguei uma da pilha e quebrei-a naquela cabeça tola
que avançava para mim. Toda a pilha de potes caiu e ouvi gritos e
pés correndo de todos os lados. Precipitei-me para a lanchonete e
lá, um homem de branco, como um cozinheiro, juntou-se à
perseguição. Dei mais uma última e desesperada volta e encontreime
entre lâmpadas e ferragens. Fui para trás do balcão e esperei
pelo meu cozinheiro e quando ele irrompeu, à frente da caçada,
bati-lhe com uma lâmpada. Ele caiu e eu, agachando-me por trás do
balcão, comecei a tirar as roupas tão depressa quanto possível.
Sobretudo, paletó, calças, sapatos, saíram bem, mas uma camiseta
de lã de carneiro ajusta-se a um homem como uma segunda pele.
Ouvi mais homens chegando, mas meu cozinheiro jazia quieto do
outro lado do balcão, desmaiado ou assustado a ponto de perder a
voz e eu tinha que sair dali, como um coelho enxotado de um
monte de lenha.
— "Por aqui, guarda!", ouvi alguém dizer. Estava
novamente no depósito de camas e no final de uma selva de
guarda-roupas. Corri por entre eles, caí, livrei-me da camiseta após
contorções infindáveis e vi-me livre outra vez, ofegante e assustado,
quando o policial e um dos balconistas dobraram a esquina
formada pela parede. Atiraram-se sobre a camiseta e as calças e
agarraram as calças. "Ele está deixando cair o roubo", disse um dos
jovens. "Deve estar em algum lugar por aqui."
— Mas, mesmo assim, não me encontraram.
— Fiquei algum tempo olhando a caçada e maldizendo
minha má sorte de perder as roupas. Depois fui para a lanchonete,
bebi um pouco de leite que encontrei ali e sentei-me junto ao fogo
para examinar minha situação.
— Dentro em pouco chegaram dois empregados e
começaram a discutir o assunto muito excitados, como idiotas que
eram. Ouvi um relato exagerado de minhas depredações e outras
hipóteses aventadas sobre meu paradeiro. Depois recomecei a fazer
planos. A dificuldade insuperável daquele lugar, especialmente
agora que tinha sido alertado, era retirar de lá qualquer material
roubado. Desci até o armazenamento, para verificar se havia
qualquer possibilidade de embalar e endereçar um embrulho, mas
não sabia como funcionava o sistema de controle. Por volta das
onze horas, a neve que caíra tendo derretido e o dia sendo mais
bonito e um pouco mais quente que o anterior, decidi que a loja de
departamentos era impossível e saí novamente, exasperado com
meu insucesso tendo em mente apenas os mais vagos planos de
ação.
23
EM DRURY LANE
— Agora você está começando a entender o grande
inconveniente de minha situação — continuou o Homem Invisível.
— Não tinha abrigo, nem agasalho. Vestir-me seria abrir mão de
toda minha vantagem, tornar-me algo estranho e terrível; estava em
jejum, pois comer, encher-me de matéria não assimilada, seria
tornar-me grotescamente visível de novo.
— Não pensei nisso — disse Kemp.
— Também não tinha pensado. E a neve me havia
mostrado outros perigos. Não podia andar na neve — ela pousaria
em mim e me exporia. A chuva também faria de mim uma silhueta
aquosa, a superfície brilhante de um homem — uma bolha. E a
neblina — deveria parecer uma bolha menos nítida em um
nevoeiro, um corpo, o lampejo fugidio de um ser humano. Além
disso, quando saí, no ar de Londres, juntava sujeira em meus
tornozelos e manchas flutuantes de fuligem e poeira em minha
pele. Não tinha idéia de quanto tempo demoraria até que me
tornasse visível, por causa disso também. Mas via claramente que
não seria muito.
— De qualquer forma, não em Londres.
Atravessei a zona de cortiços em direção a Great
Portland Street e encontrei-me no fim da rua onde havia morado.
Não fui por ali por causa da turba que se aglomerava a meio
caminho, diante das ruínas ainda fumegantes da casa que tinha
incendiado. Meu problema mais urgente consistia em arranjar
roupas. Outra coisa que me preocupava era o que fazer com meu
rosto. Vi então uma dessas pequenas lojas de miscelânea, jornais,
balas, brinquedos, papéis de carta, disfarces que haviam sobrado do
Natal e coisas assim — uma coleção de máscaras e narizes.
Compreendi que um problema estava resolvido. Imediatamente,
soube o que devia fazer. Dei meia-volta, não mais sem objetivo e
acerquei-me — tortuosamente, a fim de evitar os caminhos mais
freqüentados — pelas ruas ao norte do Strand; pois lembrava-me,
embora não muito distintamente, onde alguns fornecedores de
roupas para teatro tinham lojas nas cercanias.
— O dia estava frio, com um vento cortante que varava
as ruas que iam para o norte. Andava depressa, com medo de que
alguém emparelhasse comigo. Cada esquina era um perigo, cada
pedestre algo que tinha que observar atentamente. Um homem que
ia ultrapassando, no fim de Bedford Street voltou-se bruscamente e
colidiu comigo, jogando-me na rua, quase sob as rodas de um
coche que passava. O veredicto dos cocheiros na fila de carros de
aluguel foi que ele tivera algum tipo de ataque. Fiquei tão
acovardado por esse encontro que fui até o mercado de Covent
Garden e sentei-me por algum tempo, ofegante e trêmulo, em um
canto sossegado, junto a uma banca de violetas. Constatei que tinha
apanhado outro resfriado e fui obrigado a sair de lá pouco depois,
para não correr o risco de chamar atenção com meus espirros.
— Finalmente alcancei o objetivo de minha busca, uma
lojinha suja e cheia de moscas em um beco perto de Drury Lane,
com a vitrine cheia de roupões de borlas douradas, jóias falsas,
perucas, chinelos, dominós e fotografias de teatro. A loja era
antiquada, escura e de teto baixo, e a casa acima dela tinha quatro
andares encardidos e melancólicos. Olhei pela vitrine e, não vendo
ninguém lá dentro, entrei. O abrir da porta fez com que soasse um
sino estridente. Deixei-a aberta e circundei um estrado de roupas
vazio, até um canto por trás de um espelho comprido de abrir. Por
mais ou menos um minuto, não veio ninguém. Então ouvi pés que
atravessavam pesadamente a sala e apareceu um homem no outro
extremo da loja.
— Meus planos estavam perfeitamente definidos.
Pretendia entrar na casa, esconder-me no andar de cima, esperar
pela oportunidade e, quando tudo estivesse quieto, procurar uma
peruca, óculos com máscara e roupas, saindo para o mundo como
uma figura grotesca, mas ainda assim, revestida de credibilidade. E,
aproveitando a chance, naturalmente, roubaria todo o dinheiro
disponível na casa.
— O homem que havia entrado na loja era baixo, magro,
curvo, de testa saliente, com braços compridos e pernas arqueadas
muito curtas. Ao que parecia, tinha interrompido sua refeição.
Olhou a loja toda, com uma expressão de expectativa. Esta
transformou-se em surpresa e depois em raiva, quando viu que
estava vazia. — "Malditos garotos!", xingou. Foi até a porta e olhou
a rua de um extremo a outro. Após um minuto entrou, fechou a
porta da loja irritadamente com um pontapé e voltou,
resmungando, à porta que levava à moradia.
— Adiantei-me para segui-lo e, com o barulho de meus
movimentos, parou abruptamente. Fiz o mesmo, espantado com a
agudeza de sua audição. Bateu a porta da casa na minha cara.
— Parei, hesitante. De súbito, ouvi seus passos
apressados que voltavam e a porta foi reaberta. Ficou observando a
loja, como alguém que ainda não está convencido. Depois, ainda
resmungando, examinou a parte de dentro do balcão e olhou atrás
de algumas armações. Deteve-se, cheio de dúvidas. Tinha deixado a
porta da casa aberta e esgueirei-me para a sala interna.
— Era uma salinha esquisita, pobremente mobiliada, com
uma quantidade de máscaras grandes a um canto. À mesa estava
sua refeição interrompida e foi uma coisa extremamente frustrante
para mim, Kemp, ser obrigado a sentir apenas o cheiro do café,
olhando-o, quando o homem voltou e continuou a comer. E suas
maneiras à mesa eram irritantes. Três portas abriam-se para a
salinha, uma levando para cima e outra para baixo, mas estavam
fechadas. Não podia sair da sala enquanto ele estivesse ali, mal
podia mover-me por causa de seus ouvidos e havia uma corrente de
ar em minhas costas. Por duas vezes sufoquei um espirro bem a
tempo.
— A acuidade espetacular de minhas sensações era
curiosa e inédita, porém, acima de tudo estava terrivelmente
cansado e furioso muito antes que ele tivesse acabado de comer.
Finalmente terminou, e pondo a louça miserável na bandeja negra
de lata onde estava o bule de chá, catou as migalhas na toalha
manchada de mostarda e levou tudo para dentro. As coisas que
carregava impediram-no de fechar a porta — o que teria feito;
nunca vi um homem que gostasse tanto de fechar portas — e seguio
até uma copa-cozinha muito suja no porão. Tive o prazer de vêlo
começar a lavar tudo e depois, sem nenhum interesse em ficar
ali, com o chão de tijolos muito frio sob meus pés, voltei para cima
e sentei-me na cadeira dele, junto ao fogo. Estava baixo e, sem
pensar muito, pus mais alguns carvões. O barulho trouxe-o para
cima imediatamente e ficou de pé com um olhar feroz. Examinou a
sala e esteve a um passo de tocar-me. Mas não me pareceu
satisfeito, mesmo depois da inspeção. Deteve-se no umbral da
porta e fez uma última revista, antes de descer.
— Esperei uma eternidade na pequena sala e, finalmente,
ele subiu e abriu a porta do andar de cima. Mal consegui passar
com ele.
— De repente, parou na escada e quase tropecei nele.
Ficou olhando para trás, bem no meu rosto, ouvindo. "Poderia
jurar", disse. A mão cabeluda e longa puxava o lábio inferior.
Correu as escadas com os olhos, de cima a baixo. Depois grunhiu e
continuou a subir.
— A mão dele estava na maçaneta da porta quando
parou novamente, com a mesma expressão de irritada perplexidade.
Estava começando a perceber os leves ruídos de meus movimentos
perto dele. O homem devia ter uma audição diabolicamente
apurada. De súbito, foi dominado pela fúria. "Se há alguém nesta
casa", gritou, com um xingamento e deixou a ameaça inacabada.
Pôs a mão no bolso, não encontrou o que queria e,
passando por mim precipitadamente, desceu, barulhento e
agressivo. Mas não o segui. Sentei-me no alto da escada até que
voltasse.
— Subiu de novo após algum tempo, ainda
resmungando. Abriu a porta do quarto e antes que eu pudesse
entrar, bateu-a em minha cara.
— Resolvi explorar a casa e levei algum tempo ocupado
nisso, tão silenciosamente quanto possível. A casa era muito velha e
mal conservada, tão úmida que o papel nas paredes do sótão estava
descolando e havia muitos ratos. Algumas maçanetas estavam
emperradas e tive medo de girá-las. Vários cômodos que vi não
tinham móveis e outros estavam atulhados de trastes velhos de
teatro, comprados de segunda mão, segundo me pareceu, por seu
aspecto. Em um dos quartos, perto do dele, achei uma quantidade
de roupas velhas. Comecei a remexê-las e, em minha ansiedade,
esqueci a agudeza evidente da audição do homem. Ouvi passos
furtivos e, erguendo a cabeça bem a tempo, vi-o de olhos pregados
na pilha desmoronada, tendo na mão um revólver antigo. Fiquei
absolutamente imóvel enquanto ele olhava em volta, desconfiado e
de boca aberta. "Deve ter sido ela", disse devagar. "Que vá para o
diabo!"
— Fechou a porta com cuidado e logo ouvi a chave girar
na fechadura. Depois os passos afastaram-se. Imediatamente
ocorreu-me que estava trancado. Por um minuto, fiquei sem saber
o que fazer. Andei da porta para a janela, voltei e detive-me,
perplexo. Fui tomado por uma onda de ódio. Mas resolvi examinar
as roupas, antes de mais nada, e minha primeira tentativa derrubou
um monte que estava na prateleira de cima. Isso o trouxe de volta,
mais sinistro do que nunca. Dessa vez chegou a me tocar, recuou
em um pulo, assombrado, e parou, cheio de pasmo, no centro do
quarto.
— Depois de algum tempo, acalmou-se um pouco.
"Ratos", disse a meia voz, com os dedos repuxando os lábios.
Estava, evidentemente, um tanto amedrontado. Esgueirei-me para
fora em silêncio, mas uma tábua rangeu. Então o pequeno animal
diabólico começou a percorrer a casa empunhando um revólver,
fechando porta atrás de porta e pondo as chaves no bolso. Quando
compreendi o que ele pretendia, tive um acesso de raiva — mal
podia controlar-me o bastante para aguardar a oportunidade. A essa
altura, sabia que estava sozinho na casa e assim, sem mais delongas,
dei-lhe um golpe na cabeça.
— Deu-lhe um golpe na cabeça! — exclamou Kemp.
— Sim — tonteei-o — quando descia as escadas. Bati
nele pelas costas, com um tamborete que havia no patamar. Rolou
as escadas como um saco de botas velhas.
— Mas... Veja bem! As convenções habituais de
humanidade ...
— Tudo isso é muito bom para gente comum. Mas o
problema era, Kemp, que tinha de sair daquela casa sem que me
visse. Não me ocorreu nenhuma outra forma de fazê-lo. Ainda o
amordacei com um colete Luís XIV e amarrei-o em um lençol.
— Amarrou-o em um lençol!
— Fiz uma espécie de saco. Era uma boa idéia manter o
idiota sossegado e com medo em uma coisa danada de difícil de sair
— a cabeça longe do cordão. Meu caro Kemp, não adianta ficar aí
me olhando como se eu fosse um assassino. Tinha que ser feito.
Ele estava com o revólver. Se me visse uma vez, poderia descreverme..
.
— Mas, ainda assim — disse Kemp —, na Inglaterra de
hoje. O homem na própria casa e você — bem, roubando.
— Roubando! Que diabo! Daqui a pouco vai me chamar
de ladrão! Ora, Kemp, você não é suficientemente tolo para
obedecer a velhas regras. Será que não entende minha posição?
— E a dele também — respondeu Kemp.
O Homem Invisível levantou-se bruscamente. — Que
quer dizer?
As feições de Kemp endureceram. Esteve a ponto de
falar, mas conteve-se. — Pensando bem — disse com uma súbita
mudança de atitude —, suponho que a coisa tinha que ser feita.
Você estava em uma enrascada. Mas. ..
— Claro que estava em uma enrascada — uma enrascada
infernal. E ele também me irritou — procurando por mim na casa,
manuseando o revólver, fechando e abrindo portas. Era
simplesmente exasperante. Você não me censura, não é? Não me
censura?
— Nunca censuro ninguém — replicou Kemp. — É uma
coisa muito antiga. E o que fez depois?
— Sentia fome. Encontrei embaixo um pedaço de pão e
um queijo rançoso — mais do que o bastante para satisfazê-la.
Tomei um pouco de conhaque com água e depois passei pelo meu
saco improvisado — ele estava absolutamente imóvel — até o
quarto onde havia roupas velhas. Este dava para a rua, com um par
de cortinas de renda encardidas de sujo protegendo a janela. Fui até
lá e olhei pelos buracos. Lá fora o dia estava claro, contrastando
com as sombras escuras da pobre casa onde me encontrava,
radiantemente claro. Havia um tráfego intenso, carrinhos com
frutas, uma charrete, uma carroça de quatro rodas com uma
quantidade de caixas, a carroça de um pescador. Voltei-me, com
pontos coloridos dançando diante dos olhos, para as instalações
escuras atrás de mim. Minha excitação estava sendo substituída de
novo pelo nítido discernimento de minha situação. O quarto
recendia de leve a benzina, usada, penso, na limpeza das roupas.
— Comecei uma revista sistemática do lugar. Parecia-me
que o corcunda já habitava sozinho aquela casa havia algum tempo.
Era uma pessoa estranha. Reuni no depósito de roupas tudo o que
poderia ser de alguma utilidade para mim e depois fiz uma
cuidadosa seleção. Achei uma bolsa que julguei um pertence
adequado, pó-de-arroz, ruge e massa colante.
— Tinha pensado em pintar e empoar meu rosto e tudo
quanto aparecia de mim para tornar-me visível, mas a dificuldade
disso era que precisaria de aguarrás e outros recursos, além de um
tempo considerável antes de poder desaparecer novamente. Afinal,
escolhi uma máscara de melhor qualidade, ligeiramente grotesca,
mas não mais do que muitos seres humanos, óculos escuros, suíças
grisalhas e uma peruca. Não consegui encontrar nenhuma peça de
roupa íntima, mas isso poderia comprar depois e, provisoriamente,
enrolei-me em dominós de algodão e echarpes de lã branca.
Também não encontrei meias, mas as botas do corcunda eram
folgadas e bastavam. Em uma mesa da loja havia três soberanos e
perto de trinta xelins em níqueis e em um armário trancado que
arrombei, em um dos aposentos internos, havia oito libras de ouro.
Preparado, podia enfrentar o mundo novamente.
— Então, fui presa de uma estranha hesitação. Minha
aparência seria mesmo. . . aceitável? Eu próprio o experimentei,
com um pequeno espelho de quarto, examinando-me sob todos os
ângulos para ver se não havia nenhuma fresta esquecida, mas tudo
parecia correto. Estava grotesco a ponto de parecer exageradamente
teatral, um arremedo de ator, mas decerto não era uma
impossibilidade física. Ganhando confiança, levei o espelho para a
loja, desci as persianas e observei-me sob todos os pontos de vista,
com a ajuda das folhas do espelho no canto.
— Passei alguns minutos ganhando coragem, depois abri
a porta da loja e saí para a rua, deixando o homenzinho livre para
desvencilhar-se de seu lençol quando quisesse. Em cinco minutos
tinha posto uma dúzia de voltas entre mim e a loja de fantasias.
Ninguém demonstrava muito interesse em mim. Parecia ter
vencido meu último obstáculo.
Mais uma vez, calou-se.
— E você não se preocupou mais com o corcunda? —
perguntou Kemp.
— Não — respondeu o Homem Invisível. — Nem
soube o que aconteceu com ele. Suponho que tenha se
desamarrado, ou rompido tudo para sair. Os nós estavam bem
apertados.
Ficou em silêncio, foi até a janela e olhou para fora.
— Que aconteceu quando você foi até o Strand?
— Oh! — mais uma desilusão. Pensei que havia chegado
ao fim de meus problemas. Achei que, praticamente, estava impune
para fazer tudo o que quisesse, tudo — menos trair meu segredo.
Foi o que pensei. O que quer que fizesse, fossem quais fossem as
conseqüências, nada poderia me atingir. Só tinha que livrar-me das
roupas e desaparecer. Ninguém seria capaz de me prender. Podia
apanhar dinheiro onde o encontrasse. Decidi dar a mim mesmo
uma festa suntuosa e depois hospedar-me em um bom hotel, onde
acumularia mais alguns pertences. Sentia-me estranhamente
confiante — não é muito agradável recordar que fui um asno.
Entrei em um restaurante e já estava escolhendo o almoço, quando
ocorreu-me que não poderia comer sem expor meu rosto invisível.
Acabei de encomendar o almoço, disse ao homem que voltaria
dentro de dez minutos e saí, furioso. Não sei se você já teve seu
apetite frustrado.
— Não tanto assim — disse Kemp —, mas imagino o
que seja.
— Poderia ter arrebentado aqueles idiotas. Finalmente,
estonteado com o desejo de uma comida saborosa, fui a outro lugar
e pedi uma sala privativa. "Estou desfigurado", disse,
"horrivelmente". Olharam-me com curiosidade, mas, é claro, não
era da conta deles — e afinal consegui meu almoço. Não fui
especialmente bem servido, mas o bastante; e quando me satisfiz,
relaxei com um charuto, tentando traçar meu plano de ação. Lá
fora, estava começando uma tempestade de neve.
— Quanto mais pensava, Kemp, mais compreendia o
solitário absurdo que era um Homem Invisível — em um clima
instável e frio e uma cidade cheia e civilizada. Antes de fazer aquela
experiência louca, sonhara com mil privilégios. Naquela tarde, tudo
era decepção. Repassei mentalmente todas as coisas que um
homem julga desejáveis. Sem dúvida, a invisibilidade tornava
possível obtê-las, mas impossível gozá-las quando conseguidas. A
ambição — de que vale ter orgulho de um lugar, quando se está
impossibilitado de aparecer lá? De que vale o amor de uma mulher
quando o seu nome tem que ser Dalila? Não tenho interesse pela
política, pelo brilho falso da fama, pela filantropia ou pelo esporte.
Que iria fazer? E por isso tudo tinha me tornado um mistério
embuçado, a caricatura de um homem, enfaixado e cheio de
ataduras!
Fez uma pausa e sua atitude sugeriu um olhar inquieto
pela janela.
— Mas como chegou a Iping? — perguntou Kemp,
ansioso em manter o visitante ocupado em falar.
— Fui para lá para trabalhar. Tinha uma esperança. Era
apenas o embrião de uma idéia. Ainda a tenho. Mas agora é uma
idéia completa. Um modo de voltar! De desfazer o que fiz. Quando
quiser. Quando tiver feito tudo quanto pretendo fazer, sendo
invisível. E é sobre isso, principalmente, que quero falar com você
agora.
— Você foi direto a Iping?
— Fui. Simplesmente tinha que pegar meus três volumes
de anotações, meu talão de cheques, minha bagagem e roupa de
baixo, encomendar certos produtos químicos para desenvolver
minha idéia — vou lhe mostrar os cálculos logo que recupere meus
livros — e então parti. Deus! Lembro-me agora da tempestade de
neve e do maldito incômodo que era ter que impedir que a neve
umedecesse meu nariz de massa.
— E no fim — disse Kemp —, anteontem, quando
descobriram quem era você, a julgar pelos jornais, você. ..
— Foi mesmo. Matei aquele policial estúpido?
— Não — respondeu Kemp. — Espera-se que ele se
recupere.
— Sorte a dele, então. Perdi completamente a cabeça
com os idiotas! Por que não podiam me deixar em paz? E o
palerma do caixeiro?
— Não há previsão de mortes — disse Kemp.
— Não diria o mesmo do meu vagabundo — falou o
Homem Invisível, com um riso desagradável. — Por Deus, Kemp,
você não sabe o que é raiva! Trabalhar durante anos, planejar,
estudar e depois ter um idiota obtuso atrapalhando seu objetivo.
Todos os tipos possíveis e imagináveis de seres tolos jamais criados
foram escolhidos para me importunarem. Com um pouco mais,
enlouqueço. Vou começar a esmagá-los. Já tornaram as coisas mil
vezes mais difíceis para mim.
— É irritante, sem dúvida — disse Kemp secamente.
24
O PLANO QUE FALHOU
— Mas agora — disse Kemp, relanceando o olhar para
fora da janela —, que vamos fazer?
Enquanto falava, aproximou-se do visitante, de forma a
impedir-lhe a possibilidade de divisar os três homens que
avançavam, subindo a estrada da colina com uma lentidão que
parecia insuportável a Kemp.
— Que estava planejando fazer, quando se dirigia a Port
Burdock? Tinha algum plano?
— Ia sair do país. Mas alterei meus planos depois que o
encontrei. Pensava que seria prudente ir para o sul, agora que o
tempo esquentou e a invisibilidade é viável. Especialmente porque
meu segredo tornou-se conhecido e todos estariam alertas em
relação a um homem mascarado e encapuçado. Há uma linha de
navios daqui para a França. Minha intenção era subir a bordo de
um deles e correr os riscos da travessia. Depois poderia ir de trem
para a Espanha, ou então para a Argélia. Não seria difícil. Lá, um
homem pode ser permanentemente invisível — e ainda assim viver.
E fazer coisas. Estava usando aquele vagabundo como meu cofre
de dinheiro e carregador de bagagem, até decidir como meus livros
e pertences poderiam ser mandados para mim.
— Claro.
— Então aquele animal nojento resolveu tentar roubarme!
Escondeu meus livros, Kemp. Escondeu meus livros! Se puder
pôr as mãos nele!
— O melhor curso é tirar os livros dele primeiro.
— Mas onde está? Você sabe?
— Está na delegacia da cidade, preso, a seu pedido, na
cela mais forte do lugar.
— Canalha! — xingou o Homem Invisível.
— Mas isso altera um pouco os meus planos.
— Preciso pegar os livros; aqueles livros são vitais.
— Certamente — concordou Kemp um pouco nervoso,
imaginando se ouvia passos do lado de fora. — Decerto
precisamos achar os livros. Mas não será difícil, se ele ignorar o que
representam para você.
— É verdade — disse o Homem Invisível, e ficou
pensativo. Kemp tentou lembrar-se de alguma coisa que
estimulasse a conversa, mas o Homem Invisível continuou,
espontaneamente.
— Ter invadido sua casa por mera casualidade, Kemp —
disse — muda todos os meus planos. Pois você é um homem capaz
de me compreender. A despeito de tudo o que aconteceu, a
despeito dessa publicidade, da perda de meus livros, de tudo o que
sofri, ainda há grandes possibilidades, enormes possibilidades...
Não disse a ninguém que estou aqui? — perguntou abruptamente.
Kemp hesitou. — Isso ficou implícito — respondeu.
— A ninguém? — insistiu Griffin.
— Absolutamente.
— Ah! Bem. . . — O Homem Invisível levantou-se e
pondo as mãos nos quadris, começou a andar pelo escritório.
— Cometi um erro, Kemp, um erro monumental, ao
realizar esse trabalho sozinho. Desperdicei energia, tempo,
oportunidades Só! É extraordinário como um homem pode fazer
pouca coisa
quando está só! Roubar um pouquinho, ferir um
pouquinho e é tudo.
— O que quero, Kemp, é um guardião, um ajudante e
um lugar onde me esconder, um arranjo que me permita dormir,
comer e repousar em paz, sem despertar suspeitas. Preciso de um
aliado. Com um aliado, comida e descanso — milhares de coisas
são exeqüíveis.
— Até agora segui uma linha de conduta pouco definida.
Temos que considerar tudo quanto a invisibilidade significa e tudo
quanto não significa. Não vale muito para ouvir sem ser visto e por
aí afora — fazemos barulhos. De pouco adianta, ou talvez adiante
um pouco, para arrombar casas e coisas assim. Se me pegam,
podem aprisionar-me facilmente. Mas, por outro lado, ê difícil me
prenderem. De fato, essa invisibilidade só é boa em dois casos: é
útil para fugir e é útil para se chegar perto. Portanto, é
especialmente útil para matar. Posso andar em volta de um homem,
seja qual for sua arma, escolher meu alvo e golpear como quiser.
Driblar como quiser. Fugir como quiser.
Kemp levou a mão ao bigode. Haveria um movimento
no andar de baixo?
— E o que temos que fazer é matar, Kemp.
— O que temos que fazer é matar — repetiu Kemp. —
Estou ouvindo o seu plano, Griffin, mas veja bem, não estou
concordando. Por que matar?
— Não seriam mortes ao acaso, mas assassinatos lógicos.
A razão é que sabem que existe um Homem Invisível — tanto
quanto sabemos que há um Homem Invisível. E esse Homem
Invisível, Kemp, deve implantar um Reino de Terror. Sim, sem
dúvida é assustador. Mas essa é a minha intenção. Um Reino de
Terror. Deve apossar-se de uma cidade como a sua, Burdock,
apavorá-la e dominá-la. Deve dar ordens. Pode fazê-lo de mil
formas — pedaços de papel enfiados por baixo das portas são
suficientes. E matará todos os que desobedecerem a suas ordens e
matará todos os que defenderem os rebeldes.
— Hum! — exclamou Kemp, que já não ouvia Griffin,
mas o som da porta principal abrindo e fechando. — Parece-me,
Griffin — disse ele para ocultar sua desatenção —, que seu aliado
ficaria em uma situação difícil.
— Ninguém iria saber que ele era um aliado — disse o
Homem Invisível animadamente. E, de súbito: — Psiu! Que há lá
embaixo?
— Nada — retrucou Kemp e, de repente, começou a
falar rapidamente, em voz muito alta. — Não concordo com isso,
Griffin — disse. — Compreenda, não concordo com isso. Por que
sonhar com um jogo que é contra a humanidade? Como pode
esperar ser feliz? Não seja um lobo solitário. Publique seus
resultados; admita o mundo — ou, ao menos, admita a nação —
em sua confiança. Pense no que poderia fazer com um milhão de
colaboradores.. .
O Homem Invisível interrompeu Kemp. — Ouço passos
subindo a escada — disse em voz baixa.
— Tolice — redargüiu Kemp.
— Deixe-me ver — insistiu o Homem Invisível,
avançando com o braço estendido até a porta.
Kemp hesitou um segundo, depois adiantou-se para
interceptá-lo. O Homem Invisível estremeceu e ficou imóvel. —
Traidor! — gritou a Voz e, de repente o roupão abriu-se. Sentandose,
o Invisível começou a se despir. Kemp deu três passos rápidos
até a porta e imediatamente o Homem Invisível — cujas pernas
haviam desaparecido — pôs-se de pé em um salto, com um berro.
Kemp abriu a porta de par em par.
Ao abri-la, chegou até eles o som de pés apressados e
vozes no andar térreo.
Com um movimento brusco, Kemp empurrou para trás o
Homem Invisível, saltou para o lado e fechou a porta. A chave
estava na fechadura, do lado de fora. Em poucos instantes, Griffin
estaria só, no estúdio do mirante, feito prisioneiro. Mas houve um
problema. A chave fora enfiada apressadamente naquela manhã.
Quando Kemp bateu a porta, caiu ruidosamente no tapete.
O rosto de Kemp ficou lívido. Tentou segurar a
maçaneta com ambas as mãos. Ficou de pé algum tempo, puxando.
A porta cedeu uns poucos centímetros. Mas conseguiu fechá-la de
novo.
Da segunda vez foi puxada uns trinta centímetros e o
roupão insinuou-se pela abertura. Sua garganta foi agarrada por
dedos invisíveis e ele soltou a maçaneta para defender-se. Foi
jogado para trás, levou uma rasteira e caiu pesadamente no canto
do patamar. O roupão vazio foi atirado por cima dele.
Na metade da escada estava o coronel Adye, o
destinatário da carta de Kemp e chefe de polícia de Burdock.
Contemplava, pasmo, a súbita aparição de Kemp, seguida do
extraordinário espetáculo de roupas vazias agitando-se no ar. Viu
Kemp ser derrubado e lutando para pôr-se de pé. Viu-o avançar
correndo e cair novamente, abatido como se fosse um boi.
Então, de repente, foi atingido com violência. Por coisa
nenhuma! Ao que parecia, um enorme peso tinha pulado sobre ele
e fora empurrado de cabeça escada abaixo, com um torniquete em
volta da garganta e um joelho em sua virilha. Um pé invisível pisoulhe
as costas, um barulho fantasmagórico de passos desceu a
escada, ouviu os dois policiais no vestíbulo gritarem e correrem e a
porta da frente da casa ser batida com força.
Rolou no chão e sentou-se, com um olhar de
incompreensão. Viu Kemp descer a escada cambaleando, sujo e
descabelado, um lado do rosto branco por causa de uma pancada, o
lábio sangrando, segurando um roupão cor-de-rosa e alguma roupa
de baixo pendendo-lhe dos braços.
— Meu Deus — exclamou Kemp —, o jogo acabou! Ele
se foi!
25
CAÇADA AO HOMEM INVISÍVEL
Durante algum tempo, Kemp foi tomado de tal
incoerência que não podia fazer com que Adye compreendesse a
rápida sucessão de fatos que haviam acabado de acontecer. Os dois
homens detiveram-se no patamar, Kemp falando muito depressa,
ainda com as grotescas ataduras de Griffin penduradas em um
braço. Mas, aos poucos, Adye começou a entender alguma coisa da
situação.
— Ele é louco — repetia Kemp. — Desumano. E de um
egoísmo absoluto. Só pensa no que lhe convém, em sua própria
segurança. Esta manhã ouvi a terrível história de sua brutal
ambição. Já atacou pessoas. Vai matá-las, a não ser que possamos
impedi-lo. Espalhará o pânico. Nada pode detê-lo. Vai sair agora —
furioso!
— Claro que deve ser capturado — disse Adye.
— Mas como? — gritou Kemp e, subitamente,
ocorreram-lhe várias idéias. — Devem começar logo. E engajar
nesse trabalho todos os homens disponíveis. Precisam evitar que
deixe o distrito.
Se fugir, pode percorrer a região matando e ferindo.
Sonha com um reino de terror! Estou dizendo, um reino de terror.
Vigiem trens, estradas e navios. A guarnição militar tem que
colaborar. Telegrafem pedindo ajuda. A única coisa que pode
prendê-lo aqui é a esperança de recuperar alguns livros de
anotações a que ele atribui grande valor. Depois falo sobre isso. Há
um homem na delegacia de polícia — Marvel.
— Sei — disse Adye. — Sei. Aqueles livros — sim.
— E vocês têm que evitar que coma ou durma: dia e
noite a região precisa estar prevenida contra ele. A comida deve ser
guardada e trancada, toda a comida, de forma que terá que
arrombar portas para chegar a ela. Todas as casas devem ser
aferrolhadas para se defenderem dele. Que o céu nos envie noites
frias e chuva! Toda a vizinhança tem que começar a caçar e
continuar caçando. Estou lhe dizendo, Adye, ele é um perigo, uma
catástrofe; a não ser que seja localizado e preso, é aterrador pensar
nas coisas que vão acontecer.
— Que mais podemos fazer? — perguntou Adye. —
Preciso ir lá para baixo imediatamente e começar a organizar tudo.
Mas por que não vem? Sim, venha também. Venha e reuniremos
uma espécie de conselho de guerra — pediremos a colaboração de
Hopps e da administração da estrada de ferro. Por Deus! É urgente.
Venha — vá falando enquanto andamos. Que mais podemos fazer?
Largue essas coisas.
Adye foi o primeiro a descer as escadas. Encontraram a
porta da frente aberta e os policiais montando guarda do lado de
fora e olhando fixamente para o nada. — Ele fugiu, senhor — disse
um deles.
— Vamos para a delegacia agora mesmo — ordenou
Adye. — Um de vocês desça e encontre um carro para vir pegarnos,
depressa. E agora, Kemp, que mais?
— Cães — respondeu Kemp. — Arranjem cães. Eles não
o vêem mas farejam-no. Arranjem cães.
— Bom — concordou Adye. — Pouca gente sabe, mas
os guardas da prisão de Halstead conhecem um homem que tem
sabujos. Cães. Que mais?
— Tenham em mente que a comida que ele ingere,
aparece. Depois de comer, a comida aparece até ser assimilada.
Portanto tem que se esconder após qualquer refeição. Examinem
cada moita, sem parar, cada canto afastado. E tranquem todas as
armas, tudo quanto sirva como arma. Ele não pode carregar essas
coisas por muito tempo. O que puder apanhar para ferir pessoas
precisa ser escondido.
— Bom outra vez — disse Adye. — Vamos acabar por
capturá-lo.
— E nas estradas — prosseguiu Kemp, hesitante.
— Sim? — insistiu Adye.
— Vidro moído — respondeu Kemp. — Sei que é cruel.
Mas pense no que ele pode fazer!
Adye inalou ruidosamente entre os dentes cerrados. — É
antiesportivo. Não sei. Mas farei aprontarem o vidro moído. Se for
longe demais...
— Estou lhe afirmando que o homem tornou-se
desumano
— insistiu Kemp. Tenho tanta certeza de que
estabelecerá um reinado de terror — logo que se acalmem as
emoções dessa fuga
— como tenho de estar falando com você. Nossa única
chance é adiantarmo-nos a ele. Cortou os laços que o ligavam a
seus semelhantes. Que seu sangue recaia sobre a própria cabeça.
26
O ASSASSINATO DE WICKSTEED
Parece que o Homem Invisível tinha se precipitado para
fora da casa de Kemp cheio de uma fúria cega. Uma criancinha que
brincava perto do portão de Kemp foi levantada violentamente e
atirada ao chão, quebrando o tornozelo, e daí por diante, por
algumas horas, o Homem Invisível ficou fora do alcance dos
sentidos humanos. Ninguém sabe onde foi ou o que fez. Mas podese
imaginá-lo subindo apressadamente a colina e continuando, na
tarde quente de junho, pela planície aberta que fica por trás de Port
Burdock, enraivecido e desesperado com seu intolerável destino,
abrigando-se afinal, encalorado e exausto, no matagal de
Hintondean, para reorganizar seus planos fracassados contra a
própria espécie. O local parece ter sido o refúgio mais provável
para ele, pois foi ali que, cerca de duas horas da tarde, reafirmou-se
de uma forma cruelmente trágica.
Seu estado de espírito e os planos que arquitetou durante
esse tempo devem ter sido espantosos. Sem dúvida estava tomado
por uma exasperação que beirava a loucura, por causa da traição de
Kemp e, conquanto possamos ver claramente os motivos que
levaram este último a enganá-lo, ainda assim também podemos
imaginar e até compreender um pouco a fúria que a tentativa de
surpreendê-lo deve ter provocado. Talvez algo do espanto aturdido
de suas experiências em Oxford Street tenha sido relembrado pois,
evidentemente, contara com a cooperação de Kemp em seu sonho
brutal de um mundo aterrorizado. De qualquer forma, tinha
desaparecido da percepção humana quase ao meio-dia e nenhuma
testemunha viva pode contar o que fez até duas e meia. É provável
que isso tenha sido uma bênção para o gênero humano mas, para
ele, a inatividade foi fatal.
Nesse espaço de tempo, uma multidão crescente do
homens espalhados pelo campo mantinha-se ocupada. Pela manhã,
ele ainda era simplesmente uma lenda, uma ameaça; à tarde, graças
principalmente às declarações de Kemp, em palavras secas e
precisas, fora transformado em um antagonista tangível, a ser
ferido, capturado ou dominado, e toda a região começou a
organizar-se com incrível rapidez. Até às duas horas talvez ele ainda
pudesse sair do distrito tomando um trem, mas depois das duas
isso tornou-se impossível. Cada trem de passageiros nas linhas de
um grande paralelograma entre Southampton, Manchester,
Brighton e Horsham viajava de portas fechadas, e o tráfego de
mercadorias foi quase que inteiramente suspenso. E, em um grande
círculo de vinte milhas à volta de Port Burdock, homens armados
de revólveres e bastões estavam saindo com cães em grupos de três
ou quatro, para vasculharem as estradas e os campos.
A polícia montada percorria as trilhas, parando em cada
chalé e avisando os moradores para trancarem as casas e ficarem do
lado de dentro, a não ser que estivessem armados, todas as escolas
primárias tinham encerrado as aulas às três horas e as crianças,
amedrontadas e mantendo-se em grupos cerrados, apressavam-se a
ir para casa. A proclamação de Kemp — na verdade assinada por
Adye — às quatro ou cinco horas da tarde já tinha sido afixada por
quase todo o distrito. Descrevia, sucinta e claramente, todas as
condições da luta, a necessidade de não propiciar ao Homem
Invisível alimento ou repouso, a necessidade de uma observação
incessante e de atenção imediata para qualquer indício de
movimentos dele. E as providências das autoridades /oram tão
urgentes e objetivas e tão imediata a crença naquele ser estranho,
que antes do cair da noite uma área de muitos quilômetros
quadrados encontrava-se sob rigoroso estado de sítio. E também
antes do cair da noite, um arrepio de horror percorreu toda a região
alerta e nervosa. Sussurrada de boca a boca, rápida e indiscutível, de
um extremo a outro do distrito, a história do assassinato do sr.
Wicksteed foi divulgada.
Se aceitarmos a suposição de que o refúgio do Homem
Invisível foram as moitas de Hintondean, temos que supor também
que no início da tarde ele tinha saído novamente, para executar um
projeto que envolvia o uso de uma arma. Não sabemos qual era
esse projeto, mas, ao menos para mim, a certeza de que tinha nas
mãos uma arma de fogo antes de encontrar Wicksteed, é absoluta.
Não temos conhecimento dos detalhes desse encontro.
Aconteceu à beira de uma escavação de saibro, a menos de
duzentos metros da entrada da casa do porteiro de Lord Burdock.
Tudo indica ter havido luta desesperada — o chão pisoteado, os
inúmeros ferimentos do sr. Wicksteed, sua bengala lascada; mas a
razão do ataque — a não ser que fosse uma fúria assassina — é
impossível de imaginar. Realmente, a teoria da loucura é quase
inevitável. O sr. Wicksteed era um homem de quarenta e cinco ou
quarenta e seis anos, mordomo de Lord Burdock, de hábitos e
aparência inofensivos, a última pessoa no mundo a desafiar um
inimigo tão aterrorizante. Parece que o Homem Invisível usou
contra ele uma barra de ferro tirada de um trecho quebrado da
cerca. Deteve aquele homem tranqüilo, que voltava tranqüilamente
à casa para almoçar, atacou-o, superou sua inócua defesa, quebroulhe
o braço, derrubou-o e reduziu-lhe a cabeça a uma massa
informe.
Devia ter arrancado a barra de ferro da cerca antes de
encontrar a vítima; decerto carregava-a nas mãos, de prontidão.
Além do que já foi contado, só dois detalhes parecem ter relação
com o fato. O primeiro é que a saibreira não estava diretamente no
caminho de casa do sr. Wicksteed, mas afastava-se dele perto de
duzentos metros. O outro é a história de uma garotinha
que afirmava que, indo para a escola de tarde, tinha visto o homem
assassinado "trotando" de uma maneira esquisita em um campo, na
direção da saibreira. Representando a ação, sugeria um homem
perseguindo algo no chão diante dele e batendo-lhe sem parar com
a bengala. Tinha sido a última pessoa a vê-lo vivo. Perdeu-o de
vista quando morreu, oculto apenas por uma touceira de faias e
uma ligeira depressão no terreno.
Mas isso, pelo menos no entender de quem escreve,
exclui essa morte da classificação de completamente arbitrária.
Podemos imaginar que Griffin tinha realmente apanhado a barra
como uma arma, mas sem nenhuma intenção deliberada de usá-la
para matar. Então Wicksteed deve ter aparecido e notado aquele
vergalhão, movendo-se inexplicavelmente no ar. Sem pensar no
Homem Invisível — pois Port Burdock fica a quinze quilômetros
de distância — pode tê-lo perseguido. É bem possível que nem
tivesse ouvido falar no Homem Invisível. Assim, admite-se que este
estivesse fugindo — silenciosamente, para evitar que sua presença
fosse descoberta na vizinhança e que Wicksteed, excitado e curioso,
perseguindo aquele inexplicável objeto que se locomovia —
acabasse por tentar alcançá-lo.
Sem dúvida, em circunstâncias comuns, o Homem
Invisível poderia ter-se distanciado de seu caçador de meia-idade,
mas a posição em que foi achado o corpo de Wicksteed sugere que
ele tinha tido a má sorte de acuar sua presa em um canto, entre um
monte de urtigas cheias de espinhos e a cova de saibro. Para os que
já tomaram conhecimento da irascibilidade do Homem Invisível, o
resto do encontro é fácil de reconstituir.
Mas isso é pura hipótese. Os únicos fatos inegáveis —
pois as histórias de crianças muitas vezes não merecem confiança
— são a descoberta do corpo de Wicksteed, espancado até morrer
e da barra de ferro manchada de sangue e jogada entre as urtigas. O
abandono da barra mostra que, na excitação emocional do ato, se
ele tinha um propósito, quando a pegou, este foi esquecido.
Certamente era um homem de um egoísmo e frieza exagerados,
mas a visão da vítima, sua primeira vítima, ensangüentada e inerte a
seus pés, talvez tenha liberado alguma fonte represada de remorso
para obstar, por algum tempo, qualquer esquema de ação que
tivesse planejado.
Depois de matar o sr. Wicksteed, provavelmente
atravessou o campo em direção à planície. Há a história de uma voz
ouvida por dois homens ao entardecer, em um campo perto de
Fern Bottom. Chorava e ria, soluçava e gemia e, de vez em quando,
gritava. Deve ter sido estranho ouvi-la. Atravessou um campo de
trevos e desapareceu entre as colinas.
Naquela tarde, o Homem Invisível deve ter visto alguma
coisa do uso imediato que Kemp fizera de suas confidencias. Com
certeza encontrou casas fechadas e trancadas; pode ter vagueado
pelas estações ferroviárias, rondando as hospedadas e, sem dúvida,
leu a proclamação e compreendeu a natureza da campanha
organizada contra ele. E, à medida em que a noite avançava, os
campos iam ficando pontilhados, aqui e acolá, por grupos de três
ou quatro homens, e barulhentos com o latido dos cachorros.
Aqueles caçadores de um ser humano tinham instruções especiais
com referência ao modo com que deviam apoiar uns aos outros, no
caso de um encontro. Evitou-os a todos. Pode-se entender um
pouco de sua exasperação; e o fato de que ele mesmo havia
fornecido as informações que estavam sendo usadas tão cruelmente
contra ele, nada fazia para atenuá-la. Pelo menos naquele dia,
perdeu o ânimo; durante quase vinte e quatro horas, exceto quando
atacara Wicksteed, foi um homem acuado. No correr da noite,
possivelmente, comeu e dormiu; pois de manhã voltou a ser ele
mesmo, ativo, forte, colérico e implacável, preparado para sua
última grande luta contra o mundo.
27
O CERCO À CASA DE KEMP
Kemp leu uma carta estranha, escrita a lápis em uma
folha gordurosa de papel.
"Você tem se mostrado extraordinariamente ativo e
engenhoso, embora não possa imaginar o que ganha com isso. É
contra mim. Perseguiu-me um dia inteiro; tentou privar-me de uma
noite de sono. Mas, apesar de você alimentei-me, e apesar de você,
dormi, e o jogo está apenas começando. O jogo está apenas
começando. E não há nada que o justifique se não instaurar o
Terror. Esta é para anunciar o primeiro dia de Terror. Diga a seu
Chefe de Polícia e a todo o resto que Port Burdock não está mais
sob o governo da Rainha; está sob o meu governo — o do Terror!
Hoje é o dia um do ano um da nova era — a Época do Homem
Invisível. Sou o Homem Invisível Primeiro. Inicialmente os
regulamentos serão brandos. Haverá uma execução no primeiro
dia, para servir de exemplo — a de um homem chamado Kemp. A
Morte começa hoje para ele. Pode trancar-se, esconder-se, cercar-se
de guardas ou vestir uma armadura, se quiser; a Morte, a Morte
invisível está chegando. Deixá-lo tomar precauções; isso imporá
respeito a meu povo. A Morte começará a partir do marco da caixa
do correio, ao meio-dia. A carta cairá quando o correio chegar e
depois será dada a partida! O jogo se inicia. A Morte começa. Não
o ajude, meu povo, senão a Morte recairá sobre você? também.
Hoje Kemp vai morrer."
Kemp leu a carta duas vezes. — Não é uma brincadeira
— disse. — Esta é a voz dele! E fala sério.
Virou a folha dobrada e viu no lugar do endereço o
carimbo Hintondean e o detalhe prosaico, "20 centavos a pagar".
Levantou-se sem terminar o almoço — a carta viera pelo
correio da uma hora — e foi para o escritório. Tocou a campainha;
chamando a governanta, e disse-lhe para correr a casa
imediatamente, examinar todas as trancas das janelas e fechar os
postigos. Ele mesmo fechou os do escritório. De uma gaveta
trancada, em seu quarto, tirou um pequeno revólver, inspecionou-o
cuidadosamente e guardou-o no bolso do paletó esportivo.
Escreveu vários bilhetes curtos, um deles para o coronel Adye, e
encarregou a criada de entregá-los com instruções explícitas de
como fazer para sair de casa. — Não há perigo — disse, e
acrescentou mentalmente — para você. — Feito isso, permaneceu
pensativo por algum tempo e depois voltou ao almoço que estava
esfriando.
Comeu, parando de vez em quando para pensar.
Finalmente, deu um soco na mesa, com força. — Vamos apanhálo!
— exclamou. — E eu sou a isca. Ele irá longe demais.
Subiu para o mirante, fechando cuidadosamente cada
porta atrás de si. — É um jogo — disse — um jogo estranho, mas
as chances são todas a meu favor, sr. Griffin, a despeito de sua
invisibilidade. Griffin contra mundum — levado ao extremo!
Ficou de pé junto à janela, contemplando a encosta
quente da colina. — Tem que comer todos os dias — e não o
invejo. Terá mesmo dormido a noite passada? Em algum lugar, ao
relento, livre de colisões. Gostaria que tivéssemos um pouco de
tempo frio, em vez de calor.
— Pode estar me observando agora.
Chegou-se mais à janela. Algo bateu ruidosamente contra
os tijolos, acima do alizar, fazendo-o estremecer violentamente.
— Estou ficando nervoso — disse Kemp. Mas passaramse
cinco minutos antes que voltasse de novo à janela. — Deve ter
sido um pardal — pensou.
Um pouco mais tarde ouviu a campainha da porta da
frente tocar, e apressou-se a descer. Destrancou a porta e girou a
chave na fechadura, examinou a corrente, levantou-a e abriu
cuidadosamente, sem se expor. Uma voz familiar saudou-o. Era
Adye.
— Sua empregada foi assaltada, Kemp — anunciou ainda
do lado de fora.
— Quê! — exclamou Kemp.
— Seu bilhete foi-lhe tomado. Ele está aqui por perto.
Deixe-me entrar.
Kemp soltou a corrente e Adye entrou por uma fresta tão
estreita quanto possível. Parou no vestíbulo, olhando com infinito
alívio, enquanto Kemp fechava a porta. — O bilhete foi-lhe
arrancado da mão. Assustou-a terrivelmente. Ficou na delegacia.
Com um ataque histérico. Ele está bem perto daqui. De que se
tratava?
Kemp xingou.
— Que idiota fui — queixou-se Kemp. — Devia ter
sabido. Não leva nem uma hora a pé, daqui a Hintondean. Já
chegou!
— Que está acontecendo? — perguntou Adye.
— Olhe aqui — respondeu Kemp, mostrando o caminho
para o escritório. Entregou a Adye a carta do Homem Invisível.
Adye leu-a e assoviou baixinho. — E você?. . . — insistiu.
— Propunha uma armadilha. . . como um tolo — disse
Kemp — e mandei minha proposta por uma empregada. Para ele.
Adye ecoou as blasfêmias de Kemp.
— Vai fugir — opinou Adye.
— Não ele — discordou Kemp.
Do andar de cima veio um grande estrondo de vidros
quebrados. Adye viu de relance o brilho prateado de um pequeno
revólver meio para fora do bolso de Kemp. — É uma janela lá em
cima — disse Kemp e adiantou-se, subindo. Ouviram outro vidro
partindo-se, enquanto ainda estavam na escada. Quando checaram
ao estúdio, encontraram quebradas duas das três janelas, i metade
do aposento cheia de cacos de vidro e uma grande lasca na
escrivaninha. Os dois homens pararam na porta, contemplando a
destruição. Kemp xingou de novo e, ao fazê-lo, a terceira janela
cedeu, com um estalo que parecia o de uma pistola, pendeu por um
instante, o vidro rachado formando uma estrela, e caiu para dentro
do estúdio em triângulos pontiagudos e trêmulos.
— Para que é isso? — indagou Adye.
— É um começo — respondeu Kemp.
— Não há nenhum modo de subir até aqui?
— Nem para um gato — disse Kemp.
— Não há venezianas?
— Aqui, não. Em todos os cômodos de baixo.. . Epa!
Uma pancada forte e depois o ceder de madeiras
violentamente forçadas, veio de baixo. — Maldito seja! —
praguejou Kemp. — Isso deve ser.. . sim, é em um dos quartos. Ele
vai acabar com a casa toda. Mas é um louco. Os postigos estão
fechados e o vidro cairá lá fora. Vai cortar os pés.
Mais uma janela exibiu sua destruição. Os dois homens
pararam no patamar, perplexos. — Já sei! — exclamou Adye. —
Dê-me uma bengala ou coisa parecida e vou até a estação para
soltar os cães de fila. Isso deverá acabar com ele! Estão perto — a
menos de dez minutos. . .
Outra janela teve destino semelhante às anteriores.
— Você não tem um revólver? — perguntou Adye.
Kemp levou a mão ao bolso. Hesitou. — Não tenho. . .
pelo menos um de sobra.
— Trago-o de volta — insistiu Adye —, você está seguro
aqui. Kemp passou-lhe a arma.
— Agora, até a porta — disse Adye.
Ainda indecisos no patamar, ouviram uma das janelas do
quarto do primeiro andar estalar e cair. Kemp foi até a porta e
começou a correr os trincos, o mais silenciosamente possível. Seu
rosto estava um pouco mais pálido do que de costume. — Você
tem que sair direto — recomendou Kemp. Em um instante, Adye
estava na soleira da porta e os trincos voltando a seus encaixes.
Hesitou um pouco, sentindo-se mais seguro com as costas coladas
à porta. Depois desceu os degraus, ereto e firme. Atravessou o
gramado e aproximou-se do portão. Uma brisa ligeira parecia
ondular a grama. Algo moveu-se junto a ele. — Pare — disse uma
Voz e Adye imobilizou-se, apertando o revólver na mão.
— Bem? — perguntou Adye, pálido e decidido, com os
nervos tensos.
— Faça-me o favor de voltar para a casa — disse a Voz,
tão tensa e decidida quanto a de Adye.
— Desculpe — falou Adye um tanto rouco, umedecendo
os lábios com a língua. A Voz estava à frente, à esquerda, pensou.
E se tentasse a sorte com um tiro?
— Onde vai? — quis saber a Voz, e houve um
movimento rápido de ambos e um reflexo de sol no bolso
entreaberto de Adye.
Adye desistiu e pensou. — Onde vou — respondeu
lentamente — é problema meu. — As palavras ainda lhe pairavam
nos lábios quando um braço rodeou-lhe o pescoço, suas costas
sentiram uma joelhada e encontrou-se estirado no chão, de costas.
Sacou do revólver, desajeitado, e atirou de qualquer maneira e logo
em seguida foi golpeado na boca e o revólver arrancado de sua
mão. Tentou agarrar em vão uma perna escorregadia, procurou
levantar-se e caiu de novo. — Diabos! — explodiu Adye. A Voz
riu. — Mataria você agora, se não fosse pelo desperdício de uma
bala — disse. Adye viu o revólver no ar, cobrindo-o, a um metro e
pouco.
— E então? — disse Adye, sentando-se.
— Levante-se — ordenou a Voz. Adye levantou-se.
— Atenção — disse a Voz, e depois com dureza: — Não
tente nenhum truque. Lembre-se de que, se você não pode ver meu
rosto, posso ver o seu. Tem que voltar para a casa.
— Ele não vai me deixar entrar — objetou Adye.
— É pena — disse o Homem Invisível. — Não tenho
contas a ajustar com você.
Adye umedeceu novamente os lábios. Desviou os olhos
do cano do revólver e viu o mar distante, azulado e escuro, sob o
sol do meio-dia, a colina verde e acetinada, o penhasco branco de
Head, a cidade populosa, e de repente sentiu que a vida era muito
boa. Seus olhos voltaram ao pequeno objeto de metal, parado entre
o céu e a terra, a um metro.
— Que devo fazer? — perguntou, deprimido.
— O que deve fazer? — perguntou o Homem Invisível.
— Você ia procurar ajuda. Só me resta obrigá-lo a voltar.
— Tentarei. Se ele deixar-me entrar, promete que não vai
arremeter contra a porta?
— Não tenho queixas de você — disse a Voz.
Depois da saída de Adye, Kemp tinha se apressado a
subir e então, agachado entre os cacos de vidro e espiando
cautelosamente por cima do peitoril da janela do estúdio, viu Adye
de pé, parlamentando com o Invisível. — Por que não atira? —
murmurou para si mesmo. Então o revólver mudou um pouco de
posição e um raio de sol incidindo sobre ele faiscou nos olhos de
Kemp. Protegeu-os e tentou ver a origem do brilho ofuscante.
— Claro! — exclamou. — Adye entregou o revólver.
— Prometa não arremeter contra a porta — repetiu
Adye. — Não force demais um jogo que está ganhando. Dê uma
oportunidade ao homem.
— Volte para a casa. Definitivamente, digo-lhe que não
prometo nada.
De repente, Adye pareceu tomar uma decisão. Voltou-se
para a casa, caminhando devagar, com as mãos às costas. Kemp
seguia-o com os olhos, intrigado. O revólver desapareceu, luziu
novamente à vista, desapareceu outra vez e, em uma observação
mais detalhada, revelou ser o pequeno objeto escuro que
acompanhava Adye. Então, as coisas aconteceram muito
rapidamente. Adye pulou para trás, deu meia-volta, agarrou aquele
pequeno objeto, falhou, ergueu as mãos para o alto e caiu para a
frente, deixando no ar uma diminuta nuvem azul. Kemp não ouviu
o tiro. Adye estremeceu, tentou levantar-se, apoiado em um braço,
caiu para diante e ficou imóvel.
Kemp ficou algum tempo contemplando fixamente o
tranqüilo desprendimento da atitude de Adye. A tarde estava muito
quente e sem vento e nada parecia mexer-se além de um par de
borboletas amarelas correndo uma atrás da outra através dos
arbustos entre a casa e o portão da estrada. Adye jazia no gramado
perto do portão. Todos os chalés que bordejavam a estrada
descendente da colina tinham as venezianas cerradas, mas em uma
pequena casa verde de verão havia um vulto branco que parecia um
velho adormecido. Kemp esquadrinhou os arredores da casa, à
procura do brilho de um revólver, mas este havia desaparecido.
Seus olhos voltaram a Adye. O jogo estava se iniciando bem.
Então começaram toques de campainha e batidas na
porta da frente, em um crescendo que se transformou em tumulto,
mas os serviçais, obedecendo às instruções de Kemp, trancaram-se
em seus quartos. Seguiu-se o silêncio. Kemp sentou-se e ficou
ouvindo, e depois começou a espreitar cuidadosamente pelas três
janelas, uma após a outra. Foi até o alto da escada e escutou,
inquieto. Armou-se com o atiçador da lareira de seu quarto e foi
inspecionar, mais uma vez, as trancas das janelas do andar térreo.
Tudo estava seguro e calmo. Voltou ao mirante. Adye jazia imóvel
à beira do caminho de cascalho, exatamente como caíra. Trilhando
a estrada que passava pelos chalés, vinham vindo a criada e dois
policiais.
Tudo estava mortalmente quieto. A aproximação das três
pessoas dava a impressão de ser muito vagarosa. Perguntou-se que
estaria fazendo seu oponente.
Teve um sobressalto. Houve um estrondo vindo de
baixo. Hesitou, mas desceu novamente. De súbito, toda a casa
ressoou com pancadas brutais e o estraçalhar da madeira. Ouviu
um choque e o clangor destrutivo dos fechos de ferro do' postigos.
Girou a chave e abriu a porta da cozinha. Ao fazê-lo, os postigos
quebrados e lascados vieram voando para dentro. Ficou aterrado. A
moldura da janela ainda estava intacta, exceto por uma travessa
cruzada, porém apenas pequenos fragmentos de vidro denteado
ainda permaneciam nela. Os postigos tinham sido destruídos com
um machado e agora o machado descia, em golpes vigorosos, sobre
a moldura da janela e as barras de ferro que a protegiam. Então,
repentinamente, desviou-se para um lado e desapareceu. Kemp viu
o revólver no chão do caminho do lado de fora e depois a pequena
arma saltou para o ar. Desviou-se, retrocedendo. O revólver
disparou um pouco tarde demais e uma farpa da quina da porta que
fechava passou voando sobre a cabeça dele. Bateu e trancou a porta
e do outro lado ouviu Griffin, gritando e rindo. Depois
recomeçaram os golpes de machado, com seu acompanhamento de
rachaduras e destruição.
Kemp deteve-se no corredor, tentando pensar. Aquela
porta não resistiria muito mais a ele e então. ..
A campainha da porta da frente tocou outra vez. Deviam
ser os policiais. Correu para o vestíbulo, retirou a corrente e puxou
os ferrolhos. Antes de soltar a corrente exigiu que a moça falasse e
as três pessoas, amontoadas entraram na casa tropeçando; Kemp
trancou a porta de novo.
— O Homem Invisível! — exclamou Kemp. — Tem um
revólver com duas balas ainda. Matou Adye. Ou, pelo menos,
atirou nele. Vocês não o viram no gramado? Caiu ali.
— Quem?
— Adye — repetiu Kemp.
— Entramos por trás — explicou a moça.
— Que barulhada é essa? — perguntou um dos policiais.
— Ele está na cozinha — ou estará breve. Encontrou um
machado.
De repente a casa encheu-se dos golpes ressoantes do
Homem Invisível na porta da cozinha. A criada olhou fixamente
para a cozinha, estremeceu e bateu em retirada para a sala de jantar.
Kemp procurou explicar, em frases entrecortadas. Ouviram a porta
ceder.
— Por aqui — gritou Kemp subitamente ativo e
empurrou os dois policiais para o limiar da porta da sala de jantar.
— O atiçador — disse Kemp e correu para o guardafogo
da lareira. Deu um atiçador a cada policial. Repentinamente,
jogou-se para trás.
— Opa! — gritou um policial, esquivando-se e desviando
o machado com o atiçador. A pistola estalou seu penúltimo tiro,
danificando um valioso Sidney Cooper. O segundo policial baixou
seu atiçador sobre a pequena arma, como se abate uma vespa, e fêla
cair, chocalhando pelo chão.
Ao primeiro golpe a moça gritou, continuou a gritar um
pouco mais junto à lareira e depois correu para abrir os postigos —
provavelmente com a intenção de fugir pela janela destroçada.
O machado recuou para o corredor e ficou em posição, a
cerca de meio metro do chão. Podiam ouvir a respiração do
Homem Invisível. — Afastem-se, vocês dois — disse ele. — Quero
esse homem, o Kemp.
— E nós queremos você — disse o primeiro policial,
dando um passo rápido para a frente e fazendo descer o atiçador
sobre a Voz. O Homem Invisível devia ter recuado. Tropeçou no
porta-guarda-chuvas. Então, enquanto o policial cambaleava,
devido ao impulso do golpe que tinha dado, o Homem Invisível
reagiu, usando o machado; o capacete dele ficou amassado como
papel e a pancada atirou o homem, rolando pelo chão, até o pé das
escadas da cozinha. Mas o segundo policial, mirando por trás do
machado com seu atiçador, atingiu alguma coisa mole que se partiu.
Houve uma exclamação aguda de dor e o machado caiu no chão. O
policial bateu novamente, ao acaso e não acertou nada; pôs o pé em
cima do machado e bateu de novo. Depois endireitou o corpo, o
atiçador como um porrete, os ouvidos atentos ao menor
movimento.
Ouviu a janela da sala de jantar abrir-se e um ruído ligeiro
de pés do lado de dentro. Seu companheiro voltou-se e sentou-se,
com o sangue escorrendo entre o olho e a orelha. — Onde está ele?
— perguntou, do chão.
— Não sei. Acertei-o. Está em algum lugar no vestíbulo.
A não ser que tenha se esgueirado sem você ver. Dr. Kemp —
senhor.
Silêncio.
— Dr. Kemp! — gritou novamente o policial.
O segundo policial levantou-se com dificuldade. Ficou de
pé. De repente, ouviram a leve pisada de pés descalços nas escadas
da cozinha. — Ah! — gritou o primeiro policial e incontinenti
arremessou o atiçador. Só quebrou um pequeno bico de gás.
Fez menção de perseguir o Homem Invisível até
embaixo. Mas pensou melhor e entrou na sala de jantar.
— Dr. Kemp — começou, e parou bruscamente. — O
dr. Kemp está aqui — disse, enquanto o companheiro olhava sobre
seu ombro.
A janela da sala de jantar estava completamente aberta e
não se podia ver nem Kemp nem a empregada.
A opinião do segundo policial sobre Kemp foi concisa e
pitoresca.
28
O CAÇADOR CAÇADO
O sr. Heelas, o vizinho mais próximo do dr. Kemp entre
os moradores dos chalés, dormia em sua casa de verão, quando
começou o cerco à casa de Kemp. O sr. Heelas fazia parte da
minoria teimosa que se recusava a acreditar "em toda essa
bobagem" a respeito de um Homem Invisível. Entretanto, sua
mulher, como lhe seria lembrado mais tarde, acreditava. Ele insistia
em andar pelo jardim, como se não houvesse nada de anormal, e
dormia de tarde, conforme o hábito de muitos anos. Dormiu
durante todo o quebra-quebra das janelas e acordou de repente,
com a curiosa impressão de que havia algo errado. Olhou para o
lado oposto, para a casa de Kemp, esfregou os olhos e olhou de
novo. Depois encostou os pés no chão e ficou sentado, à escuta.
Disse "que diabo!" mas, ainda assim, aquela coisa estranha
continuava à vista. A casa tinha o aspecto de ter sido abandonada
havia semanas, após um violento tumulto. Todas as janelas estavam
quebradas e todas elas, com exceção das do estúdio no mirante,
estavam com os postigos internos fechados.
— Poderia jurar que estava perfeita — disse, olhando
para o relógio — há uns vinte minutos.
Começou a perceber uma agitação ao longe e o barulho
de vidros quebrados a uma distância considerável. E então, ainda
sentado e de boca aberta, aconteceu uma coisa ainda mais
fenomenal. Os postigos das janelas da sala de estar foram abertos
brutalmente e a empregada, de roupas e chapéu de passeio
apareceu, lutando desesperadamente para levantar as janelas de
guilhotina. Súbito surgiu um homem junto a ela, ajudando-a — o
dr. Kemp! Logo depois a janela foi aberta e a criada esforçou-se
para sair; atirou-se para diante e desapareceu entre os arbustos. O
sr. Heelas levantou-se, com exclamações vagas, porém veementes,
ante todos aqueles portentos. Viu Kemp ficar de pé no peitoril e
pular da janela, reaparecer quase que imediatamente, correndo por
um caminho entre a vegetação, abaixando-se enquanto corria,
como um homem que não quer ser observado. Sumiu por trás de
um laburno e apareceu outra vez pulando uma cerca que dava para
a vertente da colina, a céu aberto. Em um segundo estava do outro
lado e corria com tremenda velocidade, descendo em direção ao sr.
Heelas.
— Deus! — gritou o sr. Heelas, sob o impacto de uma
idéia —; é aquele animal, o Homem Invisível! Afinal, é verdade!
Para o sr. Heelas, pensar em coisas assim era agir e sua
cozinheira, que o observava da janela de cima, ficou espantada ao
vê-lo aproximar-se da casa a toda a brida, uns cinco quilômetros
por hora, no mínimo. — Pensei que ele não tinha medo — disse
ela. — Mary, venha até aqui! — Seguiu-se uma batida de portas, um
tocar de campainhas e a voz do sr. Heelas mugindo como um
touro. — Fechem as portas, fechem as janelas, fechem tudo! O
Homem Invisível está chegando! — Instantaneamente a casa
encheu-se de gritos, ordens e pés apressados. Correu em pessoa
para fechar as portas-janelas que abriam para a varanda; enquanto
isso, a cabeça, ombros e joelhos de Kemp apareceram no alto da
cerca do jardim. Em um segundo o dr. Kemp tinha aberto caminho
entre os aspargos e atravessava o campo de tênis, correndo para a
casa.
— Não pode entrar — disse o sr. Heelas trancando os
ferro-lhos. — Sinto muito que ele esteja perseguindo você, mas não
pode entrar!
Kemp colou ao vidro um rosto apavorado, tamborilando
e depois sacudindo desesperadamente a porta-janela. Depois,
vendo que seus esforços eram inúteis, seguiu velozmente pela
varanda, pulou o gradil e foi socar a porta lateral. Em seguida
circundou às pressas o portão do lado até a frente da casa e dali
para a estrada da colina. E o sr. Heelas, acompanhando-o com os
olhos de sua janela — uma máscara de horror — mal havia visto o
dr. Kemp desaparecer e já os aspargos estavam sendo pisoteados,
aqui e ali, por pés que ele não enxergava. Ante tudo isso, o sr.
Heelas fugiu precipitadamente para cima e o resto da caçada ficou
fora de seu campo de visão. Mas ao passar pela janela das escadas,
ouviu o portão lateral fechar-se.
Emergindo na estrada da colina, Kemp, logicamente,
escolheu o caminho descendente e foi por isso que viu a si mesmo
repetindo exatamente a corrida que acompanhara com olhos tão
críticos do estúdio do mirante, havia apenas quatro dias; para um
homem destreinado, ele corria bem; e embora seu rosto estivesse
pálido e suado, conservava a cabeça fria. Galopava em largas
passadas e sempre que aparecia um trecho de terreno irregular,
surgia uma trilha de pedras, ou luzia, cintilante, um pedaço de vidro
quebrado, seguia por ali e deixava que os pés nus e invisíveis em
seu encalço tomassem o rumo que desejassem.
Pela primeira vez na vida, Kemp descobriu como aquela
estrada era indescritivelmente vasta e deserta e como os subúrbios
da cidade, muito abaixo, no sopé da colina, pareciam estranhamente
remotos. Nunca existiu um método de locomoção mais lento ou
doloroso do que a corrida. Todas as vilas desoladas, adormecidas
ao sol da tarde, pareciam trancadas e aferrolhadas; sem dúvida
estavam trancadas e aferrolhadas — por ordens dele. Mas, de
qualquer forma, deviam manter-se vigilantes no caso de uma
eventualidade como aquela! A cidade estava se aproximando, a
visão do mar desaparecera por trás dele e as pessoas lá embaixo
começavam a se agitar. Um bonde estava chegando ao pé do
morro. Mais além ficava a delegacia de polícia. Seriam passos o que
ouvia atrás dele? Mais depressa!
Embaixo, as pessoas fitavam-no, uma ou duas corriam e
sua respiração já começava a entrecortar-se na garganta. O bonde
estava bem perto e o "Jolly Cricketers" barrava suas portas com
grande estardalhaço. Depois do bonde havia postes e montes de
cascalho — o sistema de drenagem. Teve a idéia passageira de pular
no coletivo e fechar as portas, mas depois resolveu ir para a
delegacia. Em um momento tinha ultrapassado a porta do "Jolly
Cricketers" e estava no fim da rua de calçamento irregular, com
seres humanos à sua volta. O condutor do carro e o ajudante —
fascinados pela visão daquela pressa furiosa — ficaram olhando,
sem atrelar os cavalos ao bonde. Mais adiante, as caras intrigadas
dos operários de drenagem apareceram acima do cascalho
acumulado. Afrouxou um pouco o passo, mas ouvindo o andar
rápido de seu perseguidor, adiantou-se novamente em um pulo. —
O Homem Invisível! — gritou para os operários, indicando-o com
um gesto vago e, movido por uma idéia súbita, atravessou a vala em
um salto e colocou um grupo corpulento entre ele e seu
perseguidor. Depois, desistindo do propósito de ir à delegacia de
polícia, tomou uma pequena rua lateral, passou como um raio pela
carroça do verdureiro, hesitou por um décimo de segundo à porta
de uma casa de doces e partiu para a entrada da viela que levava de
volta à Hill Street, a rua principal. À sua aparição, duas ou três
criancinhas que estavam brincando ali gritaram e fugiram depressa
e, em conseqüência, abriram-se portas e janelas, e mães indignadas
puseram a boca no mundo. Precipitou-se outra vez para Hill Street,
a trezentos metros do ponto final da linha do bonde e,
imediatamente, tomou consciência de uma vociferação tumultuosa
e de pessoas correndo.
Relanceou para a colina, rua acima. A pouco menos de
uns dez metros corria um trabalhador enorme, blasfemando
espasmodicamente e dando golpes furiosos com uma pá, e bem
atrás dele vinha o condutor do bonde, de punhos cerrados.
Subindo a rua havia outros que os seguiam, batendo e gritando. Na
direção da cidade homens e mulheres também corriam e viu
claramente um homem saindo da porta de uma loja, com uma
bengala na mão.
"Espalhem-se! Espalhem-se!", gritou alguém. Kemp não
tardou a perceber a mudança de situação na caçada. Parou e olhou
em volta, ofegando. — Ele está perto daqui! — exclamou. —
Formem uma linha de um lado a outro...
— Ah! — berrou uma voz.
Foi atingido com força sob a orelha e saiu rodopiando,
tentando dar meia-volta para enfrentar o inimigo invisível. Mal
conseguiu ficar em pé e reagiu sem resultado, atacando o ar. Depois
levou um soco no maxilar e caiu de cabeça, estirado no chão. Logo
depois um joelho comprimiu-lhe o diafragma e um par de mãos
ávidas apertaram-lhe a garganta, mas a pressão de uma delas era
mais fraca do que a da outra; segurou os pulsos, ouviu um grito de
dor de seu atacante e a pá do trabalhador veio girando pelo ar
acima dele e bateu em alguma coisa com um ruído surdo. Sentiu
uma gota úmida em seu rosto. O aperto em sua garganta afrouxou
de repente e com um esforço convulsivo, Kemp soltou-se, pegou
um ombro flácido e rolou por cima dele. Pregou os cotovelos
invisíveis no chão. — Peguei-o! — gritou Kemp. — Socorro!
Socorro! Segurem-no! Ele caiu! Prendam-lhe os pés!
Um segundo depois, houve um avanço simultâneo para o
local da luta e um estranho que chegasse à estrada de repente,
poderia pensar que estava havendo uma partida de rúgbi
excepcionalmente selvagem. E não se ouviu mais nada após os
gritos de Kemp — apenas o som de socos, pontapés e uma
respiração pesada.
Então, com um enorme esforço o Homem Invisível
repeliu um par de antagonistas e pôs-se de joelhos. Kemp agarravase
a ele pela frente, como um cão de caça com um veado, e uma
dúzia de mãos pegaram, apertaram e dilaceraram o Invisível. O cocheiro
do bonde agarrou-lhe o pescoço e os ombros e arrastou-o
para trás.
Mais uma vez, o grupo de homens que lutava caiu e rolou
sobre ele. Houve alguns chutes selvagens. Depois, subitamente, um
grito desesperado de "Piedade! Piedade!" que se transformou
depressa em um som estrangulado.
— Afastem-se, idiotas! — gritou a voz abafada de Kemp;
e houve empurrões vigorosos de gente destemida. — Estou
dizendo, ele está ferido. Afastem-se!
Houve uma breve luta para abrir espaço e o círculo de
olhos curiosos viu o médico ajoelhado, aparentemente a uns dez
centímetros no ar, segurando os braços invisíveis no chão. Por trás
dele, um policial prendia tornozelos invisíveis.
— Não o solte — gritou o trabalhador grandalhão,
empunhando uma pá ensangüentada —; está fingindo.
— Não está fingindo — disse o médico, erguendo
cuidadosamente o joelho, e eu o seguro. — O rosto machucado
estava ficando vermelho; falava em voz rouca por causa de um
lábio que sangrava. Soltou uma das mãos e pareceu estar
examinando o rosto. — A boca está molhada — disse. E depois:
— Deus do céu!
Levantou-se bruscamente, depois ajoelhou-se no chão, ao
lado da coisa invisível. Houve alguns empurrões e arrastar de pés e
um som de passos pesados quando apareceu mais gente para
aumentar a pressão da turba. As pessoas estavam saindo das casas.
As portas do "Jolly Cricketers" abriram-se completamente e
depressa. Pouco se falou.
Kemp tateava e sua mão parecia estar passando pelo
vazio. — Não está respirando — disse, e acrescentou: — Não sinto
o coração. O lado. . . Ufa!
Subitamente, uma velha que olhava por baixo do braço
do operário grandão, deu um grito agudo. — Olhem lá! — e
apontou um dedo enrugado.
Olhando para onde apontara, todos viram, impreciso e
transparente, o contorno de uma mão, uma mão flácida e caída,
como se fosse de vidro, de forma que veias e artérias, ossos e
nervos podiam ser distinguidos. E, enquanto olhavam, foi ficando
nublada e opaca.
— Epa! — exclamou o policial. — Os pés estão
aparecendo!
E assim, lentamente, começando pelas mãos e pés e
subindo pelos membros para os centros vitais daquele corpo, a
estranha metamorfose continuou. Era como a difusão vagarosa de
um veneno. Primeiro, foram os pequenos nervos brancos, o esboço
pouco nítido de um membro, depois os ossos opacos e as artérias
interligadas, a seguir a carne e a pele, primeiro uma vaga névoa
tornando-se rapidamente densa e opaca. Puderam ver então o peito
esmagado, os ombros e o vago esboço de feições abatidas e
castigadas.
Quando a multidão finalmente abriu espaço para que
Kemp ficasse de pé, jazia no chão, nu e deplorável, o corpo
maltratado e quebrado de um moço de perto de trinta anos. Tinha
o cabelo e a barba brancos — não grisalhos por causa da idade,
mas brancos, com a brancura do albino, e seus olhos eram cor de
granada. Tinha as mãos contraídas, os olhos muito abertos e sua
expressão era de cólera e espanto.
— Cubram o rosto dele! — disse um homem. — Pelo
amor de Deus, cubram esse rosto! — e três criancinhas que tinham
se insinuado no meio da multidão foram obrigadas a dar meia-volta
e ir para casa.
Alguém trouxe um lençol do "Jolly Cricketers"; e, tendoo
coberto, levaram-no para dentro.
EPÍLOGO
Assim termina a história da estranha e nefasta experiência
do Homem Invisível. E se você quiser saber mais sobre ele, terá
que ir a uma pequena estalagem perto de Port Stowe e conversar
com o proprietário. A tabuleta da estalagem é um retângulo vazio
de madeira, onde apenas se vêem um chapéu e botas e seu nome é
o título desta história. O estalajadeiro é um homenzinho baixo e
corpulento, com um nariz que se projeta como um cilindro, cabelo
crespo e faces coloridas irregularmente por manchas rosadas. Beba
fartamente e ele lhe contará, fartamente, as coisas que lhe
aconteceram depois daquela época e de como os advogados
tentaram subtrair-lhe o tesouro encontrado com ele.
— Quando concluíram que não podiam provar de quem
era o dinheiro, Deus que me perdoe se não procuraram fazer com
que me parecesse com um maldito caçador de tesouros. Tenho cara
de caçador de tesouros? E aí um cavalheiro deu-me um guinéu por
noite para contar a história no Empire Music Hall — apenas para
contar-lhes tudo em minhas próprias palavras — evitando apenas
uma.
E se você quiser interromper abruptamente o fluxo de
reminiscências, sempre pode fazê-lo, perguntando se não havia três
livros manuscritos na história. Ele confessa que havia e continua a
explicar, assegurando que todos pensam que estão com ele! Mas,
Deus que o abençoe, não estão! — O Homem Invisível foi quem
os pegou para escondê-los, quando o deixei e fugi para Port Stowe.
Foi aquele dr. Kemp quem pôs na cabeça das pessoas a idéia de que
estavam comigo.
E então ele se cala, pensativo, observa-o, furtivo, cuida
nervosamente dos copos e acaba por sair do bar.
É solteiro — seus gostos sempre foram os de um homem
solteiro e não há mulheres na casa. Usa botões, exteriormente — o
que se espera como proteção para suas vergonhas mais íntimas
mas, quando se trata de suspensórios, por exemplo, ainda prefere o
barbante.
Administra seu negócio sem nenhum espírito
empreendedor, mas com muito decoro. Seus movimentos são
vagarosos, e é um grande pensador. Na aldeia, tem a reputação de
sabedoria e a de uma parcimônia eminentemente respeitável, e seu
conhecimento das estradas do sul da Inglaterra superaria o de
Cobbett.
Em cada manhã de domingo, durante o ano inteiro,
enquanto está fechado para o mundo exterior, e todas as noites
depois das dez, vai para o salão do bar com um copo de gim
levemente respingado de água; e, tendo pousado o copo, tranca a
porta, inspeciona os postigos e olha até embaixo da mesa. Então,
convencido de sua solidão, destranca o armário, apanha uma caixa
nesse armário e uma gaveta nessa caixa, e retira três volumes
encadernados em couro marrom, colocando-os solenemente no
centro da mesa. A capa está gasta pelo tempo e manchada de um
verde de mofo — pois uma vez ficaram guardados em um buraco e
algumas páginas foram inteiramente apagadas pela água suja. O
estalajadeiro senta-se em sua cadeira de braços, enche lentamente
um comprido cachimbo de argila, olhando o tempo todo para os
livros, com um ar de triunfo. Depois puxa um deles para perto,
abre-o e começa a estudá-lo — virando as páginas para a frente e
para trás.
Tem o cenho franzido e os lábios movem-se
penosamente. — É um feitiço, um pequeno dois em cima, no ar,
uma cruz e mais absurdos. Senhor! Aquilo é que era inteligência!
Depois relaxa, recosta-se e pisca através da fumaça pela
sala, para coisas invisíveis a outros olhos. — Cheio de segredos —
diz. — Segredos maravilhosos!
— Logo que consiga dominá-los — Senhor!
— Não faria o que ele fez; faria apenas... bem! — Aspira
o cachimbo.
E assim entrega-se a um sonho, o sonho imortal e
maravilhoso de sua vida. E embora Kemp tenha fracassado
seguidamente e Adye o tenha interrogado com insistência, nenhum
ser humano, exceto o estalajadeiro, sabe onde estão os livros com
os segredos sutis da invisibilidade e mais uma dúzia de outros
segredos estranhos registrados ali. E ninguém os conhecerá, até que
ele morra.
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